"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

terça-feira, 23 de março de 2010

"Os Ladrões de Deus"

por Maria Winowska

Citaremos um episódio ocorrido na Polônia dominada pelo comunismo no período de 1945 a 1989. Episódio este retirado da Revista Pergunte e Responderemos – Agosto – 1995 – nº399 – Dom Estêvão Bettencourt O.S.B. Chama muito a atenção o relato e seu desfecho. Esperamos que goste.

Dom Estêvão:

Trata-se de um policial que, numa noite de Natal foi a uma casa paroquial para prender e maltratar o respectivo Vigário. Em conversa com o padre tranquilo, mas firme, o esbirro* se convenceu de que estava diante de um homem de Deus, asceta, sóbrio e pobre. Recordou-se outrossim das noites de Natal da sua infância, quando cantava no coral, orientado por sua mãe, e rendeu-se à evidência de que estava sendo um ladrão de Deus. Concluiu que era preciso reconciliar-se com Deus, apesar de sua sanha perseguidora.

Texto extraído do livro “Ladrões de Deus – de Maria Winowska que bem revelam o vigor da fé dos católicos perseguidos como também a fragilidade daqueles que, por conveniência política, exercitam o papel de perseguidores.

O FEROZ POLICIAL

Como a chaleira começasse a cantar, Padre Paulo desligou o fogão. Depois, como se encontrava molhado até os ossos e tremendo de frio, deixou-se cair num sofá, que gemeu sob o peso; tinha molas desgastadas.

Havia algum tempo o vento tinha dobrado de furor e as rajadas de neve rodopiavam na noite escura. Um dos batentes da porta, meio-solto, estalou uma, duas vezes... O padre sobressaltou-se:

- “Entre!”, gritou com voz rouca.

Ninguém respondeu, mas o barulho redobrou.

- “Dir-se-ia uma alma penada”, murmurou o padre estendendo suas pernas compridas, enfiadas em grosseiros sapatos. Fazia um frio glacial, mas ele estava cansado demais para se mover.

- “É preciso que eu expectore meu cansaço!”, suspirava.

Já no Seminário, seus monólogos intermináveis lhe valeram o apelido de “Reitor”. “E daí", respondia aos implicantes, “as palavras que a gente pronuncia enganam menos”. “as palavras que a gente pronuncia enganam menos”. Quando Vigário em sua casa, não se corrigiu. “Ele fala com o seu anjo!”, confiou a sua governanta às comadres. A paróquia acreditou...

Padre Paulo resmungou:

- “Se isso fosse verdade, meu anjo, eu te pediria agora que me fizesses um chá, porque de fato estou exausto e daqui a pouco preciso estar em forma...”

Quatro horas o separavam da Missa da meia-noite. Ele havia voltado de uma de suas sucursais, como chamava as paróquias vizinhas confiadas a seus cuidados, e já na igreja, diante do seu confessionário, as pessoas faziam fila.

Este pensamento o reanimou: - “Vamos, velha carcaça, apressa-te!”. Sua linguagem de antigo membro da Resistência não era muito burilada, sobretudo quando só tinha seu anjo como auditório. - “Ele me compreende”, dizia rindo, - “pois não foi criado à minha medida?”

Espreguiçou-se até estalar os ossos e bruscamente se pôs de pé. Sobre seu corpo comprido e magro, a batina flutuava como sobre uma vara, enlameada na barra e cheia de manchas esverdeadas.

- “Depois que eu tiver tomado meu chá, tudo melhorará”, resmungou entre os dentes. “Recuar nesta noite seria idiota. Vamos! Três vezes imbecil, você não sabe que o estão esperando? E talvez haja grandes peixes na rede; esta noite é diferente das outras!”

*

- “Com quem o Sr. está falando?”, perguntou uma voz atrás dele.

Ele se voltou rapidamente. O barulho do batente havia abafado o rangido da porta. Alguém havia entrado sem bater e o encarava insolentemente:

- “Quem está com o Sr.?”, repetiu o desconhecido com voz ameaçadora.

Padre Paulo se refez. Cedo ou tarde, isso teria que acontecer!

- “Meu anjo, juro! Que deseja o Sr.?”

- “Umas poucas explicações, caro Vigário, que lhe ensinarão a não zombar de mim. Dou-lhe tempo para fazer sua mala, o que me permitirá dar uma volta por aqui”.

Padre Paulo conhecia o homem de vista, mas principalmente de reputação. Por causa dele, centenas de “resistentes” apodreciam nas prisões. Promovido a mestre na arte dos interrogatórios, divertia-se com suas vítimas como um gato com seus ratos. Odiado como ninguém e considerado o maior canalha da região, gozava do lúgubre prazer de semear o pânico por onde passava. O Departamento dos Serviços Secretos lhe confiava as questões mais escabrosas, na certeza de que órgão chamado coração era nele apenas um veículo circulatório. Blindado contra qualquer sentimento de piedade, era de absoluta confiança. Em resumo, um produto ideal do Partido Comunista, pronto para múltiplas funções, esse era António Tryk, que vinha prendê-lo.

O medo do início do encontro cedia a um sentimento de responsabilidade paroquial impreterível para o padre. Daí a pouco, a Missa da meia-noite não poderia ser celebrada. As pessoas na fila do confessionário esperariam em vão! “Rainha de Yasna Gora, vem em meu auxílio!”, rezou o padre.

O policial abria portas e janelas, uma após outra. Revistava as gavetas, jogando no chão, confusamente, registros de Batismo, pães ázimos amarrados com fitas rosas e azuis, pedaços de vela, papéis de carta. Depois de ter tirado cuidadosamente toda a correspondência pessoal, que enfiou em grande pasta, Antônio Tryk deteve-se, indeciso:

- “Onde o Sr. dorme?”

A pergunta se impunha, de fato. No único cômodo do Presbitério (casa paroquial), uma péssima barraca de madeira, não havia cama. Noutra ocasião, Tryk não deixaria de fazer alguma alusão obscena, com aquele riso licencioso e lúbrico que era o terror dos seus “clientes”, mas com o Padre Paulo, considerado asceta, isso não seria adequado. Tryk estava realmente intrigado.

- “Onde o Sr. dorme?", repetiu.

Padre Paulo deu de ombros.

- “Depende” No sofá ou no chão. Não tive ainda tempo de pensar numa cama...”

Enquanto falava, continuava a importunar a corte celeste com suas mudas preces: - “Ainda essa Missa, a última talvez! Concedei-me essa Missa!”

Tryk sentou-se no sofá para experimentar se era confortável. O gemido das molas gastas sobressaltou-o:

- “Diabo!”, sussurrou entre os dentes, “ele é duro!”

- “Deseja uma xícara de chá?”, perguntou Padre Paulo com voz suave.

Tryk hesitou um momento. Estava de serviço e o regulamento proibia aceitar alimentos em casa de futuros acusados. Mas fazia tanto frio, e depois... aquela não era uma noite como as outras! Nem mesmo um policial graduado gostaria de estar de serviço em uma noite de Natal.

- “Sim!”, resmungou.

Padre Paulo ligou o fogão, preparou as xícaras, o açúcar, tirou uns biscoitos de uma caixa.

- “O Sr. gosta de chá forte?”, perguntou.

- “Prefiro forte,” disse o policial rudemente.

Seguia cada gesto do padre com desconfiança. Subitamente viu no chão, quase a seus pés, um pacote de pães ázimos. Pegou-o maquinalmente e sentiu, em sua memória atrofiada, como que um clique.

*

Sua mãe, á única pessoa que o tinha amado realmente... Aquele tempo em que era apenas um menino... A ceia da véspera do Natal, esse pão que era partido, os guisos do trenó no caminho da igreja, antes da Missa do Natal... Ele fazia parte do coral, com sua voz bonita... Tinha dificuldade para se desembaraçar de todos os agasalhos e lençóis com os quais as ternas mãos de sua mãe o agasalhavam... “Cuidado, tome friagem!” dizia ela na saída da igreja.

Padre Paulo observava discretamente o visitante.

- “O Sr. quer que o parta?”, perguntou à queima-roupa¹.

Tryk assustou-se como se o houvessem desmascarado.

- “Vá para o inferno com as suas superstições!”, sussurrou entre os dentes.

Depois, pegando a xícara que o padre lhe dava sorrindo:

- “O Sr. me acha um monstro, como todos me acham?”.

Padre Paulo refletiu um momento:

- "Monstro? Não. Mas um infeliz, que pensa que ninguém o estima”.

O policial deu uma gargalhada.

- “Mas então, velho corvo, queres que eu acredite que sou digno de ser amado?”

Sentado sobre um banco, diante dele, o padre mexia pensativamente o açúcar na xícara com as bordas lascadas.

- “Sim, disse, “e é aí precisamente que Deus nos causa admiração e nos choca. Amar um bandido como o Sr., o Sr., o Sr.! e no entanto, é verdade, não há o que dizer: Ele o ama. Digo até que Ele o ama de modo muito especial”.

- “O Sr. está zombando de mim!”, gritou o policial, erguendo-se bruscamente.

- “Cuidado com a sua xícara”, disse o Padre Paulo. “Claro que não: estou falando sério. Ninguém o obriga a acreditar; mas eu o sei. É por causa de sujeitos horríveis como o Sr. e eu que há uma noite de Natal. Deus não veio até nós por sermos puros como crianças do coral, mas porque somos sórdidos e devassos. Posso até dizer que, quanto mais devassos, mais temos direito à sua misericórdia”.

*

Maldito clique, que abre as compotas! Pela brecha aberta outras lembranças vêm à tona. Antônio Tryk sente-se subitamente muito embaraçado.

- “Em resumo: o Sr. me toma por um criminoso. Mas só cumpro o meu dever, ...e creio nisso. Enquanto não tivermos extirpado todos os “resistentes” e todos os fetichistas – dos quais o Sr. é um -, a Polônia popular não poderá desenvolver-se. Eu não sou um ladrão, isso não...”

Padre Paulo escutava, movendo os lábios. Seus olhos azuis brilharam com um súbito clarão.

- “Sim, o Sr. é um ladrão”, disse ele. “E esse é mesmo o seu maior crime”.

De um salto, o esbirro ficou de pé, pálido de cólera.

- “Como ousa”, gritava, “... o Sr. tem a ousadia...”

Depois, olhando nos olhos do padre:

- “Roubei de quem?”

- “De Deus”.

Com a mão crispada sobre o punho do revólver, o policial voltou-se em estado de choque. Seus traços exprimiam uma total estupefação. Caiu novamente no sofá, deixando apavorado o padre:

- “De Deus?”, murmurou, “Roubei de Deus? Mas quê, se me faz o favor?”

- “Os seus pecados!”, exclamou o padre, em pé, diante dele, como um juiz diante do acusado. “Não foi por um nada que Ele desceu a esta Terra sórdida, mas para recolher, com a pá, nossos pobres pecados! Os meus, os seus, os do mundo inteiro! Se nós lhos recusamos, nós os roubamos dele e tornamos o Natal sem sentido. O Sr. nunca se sente tão sórdido, que desejaria dar uma surra em si mesmo, de desgosto? Nunca lhe aconteceu sentir desprezo por si mesmo, devasso como é? Pois bem; Deus quis carregar nos ombros essa imundície, tomou sobre si os seus pecados. Mas é preciso consentir nisso. O Sr. é livre para dizer Sim ou Não. E o Sr. sabe o que é dizer Sim? É o Natal no coração e na terra, meu filho! O Sr. teve uma mãe? O Sr. não foi, também uma criança feliz? É isso que o Natal lhe traz. Basta dizer Sim”.

Desarmado, com o rosto defeito, Antônio Tryk fixava espantado a figura magra do padre.

- “Se eu disser Sim que vai acontecer?”

- “Meu Deus! O Sr. vai-se confessar!”

*

Afundadas nas pregas e dobras de suas consciências delicadas, as paroquianas começavam seriamente a se impacientar; quando, por volta das 11 horas, Padre Paulo abriu ruidosamente a porta da sacristia e dirigiu-se com grandes passos para o seu confessionário.

- “De novo, uma dessas audiências particulares”, sussurrou D. Z..., com um semblante magoado e acabrunhado. “De tanto socorrer a gentalha, ele se descuida dos fieis”.

Seu espanto transformou-se em escândalo, quando o Padre emergido do confessionário e clamou com voz forte:

- “Deem lugar aos publicanos! Numa noite como esta, os grandes pecadores têm prioridade!”.

Com um amplo gesto de mão ele dividiu seus inúmeros penitentes.

- “E nós agora? Sussurrou D.Z. com ar irritado. “Vou falar com o Bispo!”.

Louco de alegria, Padre Paulo abismava-se em ação de graças. Pouco lhe importava que tivesse havido um atraso... Tinha conseguido seu “grande peixe”, que estava então escondido na sombra, perto do adro, bem coberto com o seu casacão e chorando de alegria como um novilho.

- “Senhor Jesus, tu fizeste muito bem ao vir até nós”, murmurou ele, fechando um postigo para se inclinar para o outro. “Sem Ti, estaríamos perdidos!”.

* Esbirro: Empregado menor dos tribunais. Escora de madeira usada para sustentar um travejamento. (minha observação)

¹Na Polônia, por ocasião da ceia de Natal, as pessoas partem o pão ázimo bento, em sinal de paz e caridade fraterna. (E.B.)

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