"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Mas crer, para que serve?

Pergunta
Muitos, hoje em dia, formados – ou deformados, - por uma espécie de pragmatismo, de utilitarismo, diante do novo anúncio cristão parecem também dispostos a reconhecer o seu fascínio, mas em seguida acabam por perguntar: “Afinal, ‘crer para quê’? O que acrescenta a mais a fé? Não é possível viver uma vida honesta, correta, mesmo sem incomodar-se de levar a sério o Evangelho?”

Cruzando o Limiar da Esperança – Vittorio Messori

Resposta do Papa João Paulo II

A esse tipo de pergunta poder-se-ia responder muito brevemente: a utilidade da fé não é comparável com algum bem, nem mesmo com bens de natureza moral. Com efeito, a Igreja jamais negou que um ser humano não crente possa realizar ações honestas e nobres. O que, de resto, qualquer um pode se convencer disso facilmente. O valor da fé não se pode explicar somente através da utilidade para a moral humana, muito embora a própria fé traga consigo a mais profunda motivação da moral. Por esta razão muitas vezes fazemos referência à fé como argumento. Eu também fiz o mesmo na Veritatis splendor, sublinhando a importância moral da resposta de Cristo – “Observa os mandamentos...” (Mt 19,17) – à pergunta do jovem a respeito do uso correto do dom da liberdade. Apesar disso pode-se dizer que a utilidade fundamenta da fé está no próprio fato de ter crido e de ter confiado. Maria, no momento da Anunciação, é modelo incomparável e maravilhoso de semelhante atitude; isso encontrou expressão extraordinária na obre poética de Rainer Maria Rilke, Verkündigung (Anunciação). Com efeito, acreditando e confiando, nós damos uma resposta à palavra de Deus: esta não cai no vazio, mas retorna com o seu fruto para Aquele que a pronunciara, como está escrito de uma forma bastante eficaz no livro do profeta Isaías (cf. 55,11). Deus no entanto não quer, em absoluto, obrigar-nos a resposta semelhante.

Neste aspecto, o magistério do último Concílio e, no seu âmbito, especialmente a Dignitatis humanae, (Declaração sobre a liberdade religiosa), tem uma importância particular. Valeria a pena citar a declaração na íntegra e analisa-la. Porém, talvez baste citar algumas frases: “E todos os seres humanos”, lemos, “estão obrigados a procurar a verdade, sobretudo aquela que diz respeito a Deus e a Sua Igreja e, depois de conhecê-la, a abraçá-la e a praticá-la” (nº1).

O que o Concílio destaca aqui é, antes de tudo, a dignidade do homem. O texto, portanto, continua como segue: “É postulado da própria dignidade que todos os homens – por serem pessoas, isto é, dotados de razão e de livre-arbítrio e por isso enaltecidos com a responsabilidade pessoal – sintam-se por natureza impelidos e moralmente obrigados a procurar a verdade, sobretudo a que concerne à religião. São obrigados também a aderir à verdade conhecida e a ordenar toda a vida segundo as exigências da verdade conhecida e a ordenar toda a vida segundo as exigências da verdade” (nº2). “A verdade, porém, deve ser buscada de um modo consentâneo à dignidade da pessoa humana e à sua natureza social, a saber, mediante a livre pesquisa, servindo-se do magistério e da educação, da comunicação e do diálogo” (nº 3).

Como se vê, o Concílio trata da liberdade humana com toda seriedade, e se refere também ao imperativo interior da consciência para demonstrar que a resposta dada pelo ser humano a Deus e à Sua palavra através da fé está estreitamente conexa com sua dignidade pessoal. O ser humano não pode ser obrigado à aceitação da verdade. Para ela somente é impelido pela sua natureza, isto é, pela sua própria liberdade, que o compele a procura-la sinceramente e, ao encontra-la, a ela aderir quer com a convicção quer com o comportamento.

Este é desde sempre o ensinamento que o próprio Cristo confirmou com as Suas obras. A partir desta perspectiva é preciso reler a segunda parte da Dignitatis humanae. Aí talvez se encontre também a resposta à sua pergunta.

Uma resposta, de resto, que faz eco ao ensinamento dos Padres e à tradição dos teólogos, desde Santo Tomás de Aquino a John H. Newman. O Concílio nada mais faz senão reiterar aquela que foi a constante convicção da Igreja. Com efeito, é conhecida a posição de Santo Tomás: ele é tão coerente nesta linha a respeito da consciência, a ponto de considerar ilícito o ato de fé em Cristo feito por quem, por absurdo, estivesse convencido em consciência de agir mal ao fazê-lo. (cf. Summa Theologiae, 1-2, q. 19, a. 5). Se o ser humano perceber pela própria consciência uma chamada, mesmo errônea, que no entanto lhe pareça inquestionável, deve sempre e em todo caso atende-la. O que não lhe é permitido é aderir culposamente ao erro, sem procurar chegar à verdade.

Quando Newman coloca a consciência acima da autoridade, não proclama nada de novo com relação ao magistério permanente da Igreja. A consciência, como ensina o Concílio, “é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz... Pela fidelidade à consciência, os cristãos se unem aos outros homens na busca da verdade e na solução justa de inúmeros problemas morais que se apresentam, tanto na vida individual quanto social. Quanto mais pois prevalecer a consciência reta, tanto mais as pessoas e os grupos se afastam de um arbítrio cego e se esforçam para se conformar às normas objetivas da moralidade. Acontece não raro contudo que a consciência erra, por ignorância invencível, sem perder no entanto sua dignidade. Isto porém não se pode dizer quando o homem não se preocupa suficientemente com a investigação da verdade e do bem, e a consciência, pouco a pouco, pelo hábito do pecado, se torna quase obcecada” (GS nº 16).

É difícil não perceber a profunda coerência interior da Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa. À luz do seu ensinamento podemos portanto dizer que a utilidade essencial da fé consiste na fato de que, por meio dela, o ser humano realiza o bem da sua natureza racional. E o realiza ao dar a sua resposta a Deus, como é seu dever. Um dever não só para com Deus, mas também para consigo mesmo.
Cristo fez tudo para nos convencer da importância desta resposta, que o ser humano é chamado a dar em condições de liberdade interior, a fim de que nela brilhe aquele veritatis splendor tão essencial à dignidade humana. Ele comprometeu a Igreja a agir do mesmo modo: por isso são tão comuns na sua história os protestos contra todos aqueles que tentaram obrigar à fé “convertendo com a espada”. A esse propósito é preciso lembrar que a Escola católica espanhola de Salamanca tomou uma posição claramente contrária a respeito das violências praticadas contra os indígenas da América, os índios, como pretexto de convertê-los ao Cristianismo. E que, antes disso, no mesmo espirito havia-se pronunciado a academia de Cracóvia no Concílio de Constância em 1414, condenando as violências perpetradas contra os povos bálticos como mesmo pretexto.

Cristo certamente deseja a fé. Deseja-a do ser humano e a deseja para o ser humano. Às pessoas que O procuravam por um milagre costumava dizer: “A tua fé te salvou” (cf. Mc 10,52. O caso da mulher cananeia é particularmente tocante. Num primeiro momento, Jesus parece não querer atender ao seu pedido de ajuda para a filha, como se quisesse provocar aquela confissão comovedora: “Certamente, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos” (Mt 15,27). Ele põe à prova aquela mulher estrangeira para em seguida poder dizer: “Grande é a tua fé! Seja feito como desejas” (Mt 15,28).

Jesus quer despertar nos seres humanos a fé, deseja que eles respondam à palavra do Pai, mas os quer respeitando sempre a dignidade do homem, pois na própria busca da fé está já presente uma forma de fé, implícita, e portanto já é preenchida a condição necessária para a salvação.
Nesta ótica, sua pergunta parece encontrar uma resposta exaustiva no enunciado da Constituição conciliar sobre a Igreja, que portanto merece ser relido mais uma vez: “Aqueles, portanto, que sem sua culpa ignoram o Evangelho de Cristo e Sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob o influxo da graça, cumprir por obras a Sua vontade conhecida através do ditame da consciência, podem conseguir a salvação eterna” (LG nº 16).

Na sua pergunta se trata de “uma vida honesta, reta, mesmo sem o Evangelho”. Vou responder que, se uma vida é realmente correta, é porque o Evangelho, embora não conhecido ou rejeitado a nível consciente, na realidade já desenvolve sua ação no íntimo da pessoa que procura com empenho honesto a verdade e está disposta a aceita-la, logo que chegue a conhecê-la. Com efeito, exatamente semelhante disponibilidade é manifestação da graça que opera na alma. O Espírito sopra onde quer e como quer (cf. Jo 3,8). A verdade do Espírito encontra a liberdade do homem e a confirma integralmente.

Esta abordagem era necessária para evitar todo risco de interpretação pelagiana. Esse risco já existia desde a época de Santo Agostinho, e parece querer aparecer de novo em nossa época. Pelágio sustentava que, mesmo sem a graça divina, o ser humano pode viver uma vida honesta e feliz: a graça divina, portanto, não lhe seria necessária. A verdade, pelo contrário, é que o ser humano é realmente chamado à salvação; que a vida honesta é a condição dessa salvação; e que a salvação não pode ser alcançada sem o contributo da graça.

Afinal, somente Deus pode salvar o ser humano, contando com sua colaboração. O fato que o ser humano possa colaborar com Deus é o que decide a respeito da sua grandeza verdadeira. A verdade segundo a qual o ser humano é chamado a fazê-lo em tudo em função do fim último da sua vida, ou seja, a salvação e a divinização, encontrou expressão na tradição oriental sob a forma do assim chamado sinergismo. O ser humano “cria” com Deus o mundo, o homem “cria” com Deus sua salvação pessoal. A divinização do homem provém de Deus. Mas também aqui o homem deve colaborar com Deus.

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