"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

terça-feira, 9 de março de 2010

“A vida inteira é desejo santo” (S. Agostinho)


Num de seus sermões, S. Agostinho toca numa fibra muito delicada do coração humano: o desejo inato de algo maior e melhor do que os bens visíveis que cercam o homem, passageiros e fugazes como são. A criatura humana foi feita pelo Infinito e traz em si o seio do Infinito. – Eis as palavras do S. Doutor:

“O que nos foi prometido? Seremos semelhantes a ele porque nós o veremos como é. A língua o disse como pôde. O coração imagine o restante. Já que não podeis ver agora, prenda-vos o desejo. A vida inteira do bom cristão é desejo santo. Aquilo que desejas, ainda não o vês. Mas, desejando, adquires a capacidade de ser saciado ao chegar a visão.

Se queres, por exemplo, encher um recipiente e sabes ser muito o que tens a derramar, alargas o bojo seja da bolsa, seja do odre, ou de outra coisa qualquer. Sabes a quantidade que ali porás e vês ser apertado o bojo. Se o alargares, ele ficará com maior capacidade. Deste mesmo modo Deus, com o adiar, amplia o desejo. Por desejar, alarga-se o espírito. Alargando-se, torna-se capaz. Desejemos pois, irmãos, porque havemos de ser saciados.
É esta a nossa vida: exercitando-nos pelo desejo. O santo desejo nos exercita, na medida em que contamos nosso desejo do amor do mundo. Já falamos algumas vezes do vazio que deve ser preenchido. Vais ficar repleto de bem, esvazia-te do mal.
Imagina que Deus te quer encher de mel. Se estás cheio de vinagre, onde pôr o mel? É preciso jogar fora o conteúdo do jarro e limpá-lo, ainda que com esforço, esfregando-o, para servir a outro fim.
Digamos mel, digamos ouro, digamos vinho, digamos tudo quanto dissermos e quanto quisermos dizer, há uma realidade indizível: chama-se Deus. Dizendo Deus, o que dissemos? Esta única sílaba é toda a nossa expectativa. Tudo o que conseguimos dizer, fica sempre aquém da realidade. Dilatemo-nos para ele, e ele, quando vier, encher-nos-á; seremos semelhantes a ele, porque o veremos como é” (Tratado sobre a 1ª João 4,6).

Este texto se resume em três proposições:

1) Em todo ser humano existe o anseio ora mais, ora menos explícito de algo que responda às suas aspirações mais espontâneas. Tudo o que se vê é pouco demais para a capacidade do coração humano.

2) Quanto mais intenso for o desejo, tanto mais será saciado. Em linguagem popular dir-se-á: quem apresentar a capacidade de um dedal, tê-la-á preenchida, como preenchida será a capacidade de um copo, a de um jarro, a de um balde, a de um tonel...

3) Para que tal anseio se dilate, o Senhor Deus nem sempre atende na hora marcada pela criatura, mas protela a sua resposta ou adia a sua vinda, a fim de encontrar a criatura ainda mais desejosa.

Ora a Quaresma é precisamente o tempo oportuno para que se dilate mais e mais o anseio do coração em demanda não de mel nem de ouro, mas de DEUS, do Infinito e Absoluto...

“A vida inteira do bom cristão é santo desejo”.

Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.

Revista Pergunte e Responderemos – Março 2004 – nº 501

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