"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

domingo, 16 de maio de 2010

O silêncio: Quanto vale?


Em síntese: O silêncio pode ser tão significativo quanto a palavra. Na Bíblia o silêncio de Deus pode angustiar os homens antes de se lhes tornar eloquente; salmistas e profetas sés queixam ao Senhor de não receberem dele a palavra que esperam. Por outro lado, o silêncio é recomendado aos homens para que possam ouvir Deus que fala. A resposta do homem a Deus pode ser o silêncio que adora o indizível sem palavras, porque Ele não cabe dentro do discurso humano.


Como a palavra, o silêncio é um fenômeno humano, por vezes tão significativo quanto um discurso. Penetraremos, a seguir, na densidade do tema, considerando a polivalência do silêncio na vida profana e na Sagrada Escritura.

1. Na vida profana

Distinguiremos três aspectos.

1.1. O indivíduo frente aos eventos da vida

a) Espanto
Um dos primeiros sentimentos que o silêncio pode suscitar em quem o experimenta, é o do medo ou espanto, como atesta o filósofo Blaise Pascal (+ 1662); “O eterno silêncio desses espaços infinitos me espanta” (Pensées 206 Br.).
Pode também exprimir a perplexidade dos homens diante de um acontecimento fatal: um incêndio, uma enchente, uma tempestade...

b) Concentração
Para falar sabiamente o indivíduo necessita de se preparar – o que só pode ser feito proveitosamente num clima de silêncio.

c) Repouso
O repouso requer não somente a ausência de movimentação física, mas também um certo vazio interior, deixe a imaginação de trabalhar.

d) Apatia
O indivíduo pode-se fechar no silêncio também por preguiça e indiferença ao que vai acontecendo. A pessoa então se rebaixa covardemente.

1.2. O indivíduo e seu relacionamento com o próximo

Existem modalidades de silêncio construtivas e outras deletérias.

Há o silêncio de quem ouve respeitosamente, numa atitude de humildade e de busca. Já Cícero o mencionava, usando a expressão: “tacentes loqui videbantur – Calado, pareciam falar” (Pro Sestio 40).

Registra-se também o silêncio que aprova: “Quem se cala, consente”, diz a linguagem popular. Pode ser o silêncio de quem reconhece não ter como replicar ao interlocutor, que convenceu o parceiro.

E há também o silêncio de quem se omite, deixando de chamar a atenção para uma falha que precisa de ser corrigida, permitindo assim que o mal se propague.

1.3. Quando as criaturas ameaçam calar-se...

Em Ecl 12,1-8 encontra-se belo poema inspirado pelo declínio dos anos de alguém que ignora haver uma vida lúcida após a vida presente. O autor se serve de imagens para exprimir o silêncio das criaturas que cercam o ancião:

Lembra-te do teu Criador nos dias da mocidade, antes que venham os dias da desgraça
e cheguem os anos dos quais dirás: “Não tenho mais prazer”.
Antes que se escureçam o sol e a luz, a lua e as estrelas, e que voltem as nuvens depois da chuva;
no dia em que os guardas da casa tremem e os homens fortes se curvam,
em que as mulheres, uma a uma, param de moer,
e cai a escuridão sobre as que olham pelas janelas;
quando se fecha a porta da rua e o barulho do moinho diminui,
quando se acorda com o canto do pássaro e todas as canções emudecem;
quando se teme a altura e se levam sustos pelo caminho,
quando a amendoeira está em flor e o gafanhoto se torna pesado
e o tempero perde o sabor, é porque o homem já está a caminho de sua morada eterna,
e os que choram sua morte começam a rondar pela rua.
Antes que o fio de prata se rompa e o corpo de ouro se parta,
antes que o jarro se quebre na fonte e a roldana rebente no poço,
antes que o pó volte à terra de onde veio e o sopro volte a Deus que o concedeu.
Vaidade das vaidades – diz Coélet – tudo é vaidade.

2. Folheando a Bíblia

Na S. Escritura encontram-se páginas referentes ao silêncio de Deus e outras relativas ao silêncio do homem.

2.1. O silêncio de Deus

Os salmistas e os Profetas se queixam, por vezes, do silêncio de Deus, que os deixa perplexos, pois lhes parece estarem desamparados.
Assim

Sl 83,2: “Ó Deus, não fiques calado,não fiques mudo e inerte, ó Deus!”.
Sl 28,1:A Ti, Senhor, eu clamo, Rocha minha, não me sejas surdo. Que eu não seja, frente ao teu silêncio, como os que descem à cova!”.
Sl 39,13: "Ouve a minha prece, Senhor, dá ouvidos aos meus gritos. Não fiques surdo ao meu pranto!”.
Hab 1,13: “Teus olhos são puros demais para ver o mal; tu não podes contemplar a opressão. Por que contemplas os traidores, silencias quando um ímpio devora alguém mais justo do que ele?”.

Seja mencionado ainda o silêncio do Pai por ocasião da agonia do Senhor Jesus.

Na verdade, Deus, por definição, não pode ser omisso; Ele é a Suma Perfeição, que o homem, limitado como é, não entende, cedendo desnecessariamente à perplexidade. Jesus foi atendido pelo Pai de maneira muito mais generosa do que pela isenção do cálice de sua Paixão: atravessando a morte e ressuscitando, tornou-se o Senhor dos vivos e dos mortos; cf. Ap 1,18.

Há comentadores segundo os quais o silêncio de Deus não é senão a falsa versão da surdez do homem. Ele fala, mas parece mudo, porque a criatura não O sabe ouvir.

2.2. O silêncio do homem

Distinguem-se o silêncio de escuta, o de prudência e o de Cristo.

2.2.1. Silêncio de escuta

É espontâneo ao homem calar-se para poder ouvir e refletir. Isto aparece em certas passagens bíblicas como:
Gn 24,21: A respeito do servo de Abraão encarregado de procurar uma esposa para Isaque na Mesopotâmia, é dito o seguinte: “Ele a (Rebeca) observava em silêncio, perguntando a si mesmo se o Senhor tinha ou não levado a bom termo a sua missão”.
1Sm 3,10: Samuel menino é por três vezes despertado pelo Senhor e responde: “Fala, Senhor, o teu servo escuta”.
1Rs 19, 11s: Elias percebe a Deus não no forte ruído de um furacão, mas no suave murmúrio de uma brisa leve.
Lm 3,26: “É bom esperar em silêncio a salvação do Senhor”.
No Novo Testamento Maria aparece sentada junto do Senhor, “escutando a sua palavra” (Lc 10,38).

É de notar que a tradução latina do Sl 65,2 reza “Tibi silentium laus. – Para Ti o silêncio é louvor”, em lugar da versão mais correta que seria: “A ti convém o louvor”. A versão latina se propagou nos livros de piedade; tem seu fundamento teológico, pois Deus é indizível.

2.2.2. Silêncio de prudência

São frequentes as advertências ao leitor para que não empregue palavras inúteis.

Pr 10,19:Nas muitas palavras não falta ofensa; quem refreia os lábios é prudente”.
Pr 11,12: “O homem sem juízo despreza o seu próximo; o homem inteligente se cala”.
Ecl 3,7: “Há um tempo para calar e um tempo para falar”.
Eclo 20,7: “O homem sábio se calará até o momento oportuno. O loquaz e o insensato desprezam o momento oportuno”.
Jó 40, 4: Jó confessa: “Falei levianamente; que poderei responder-te? Porei minha mão sobre a boca”.

2.2.3. Silêncio de Cristo

Após trinta anos de vida oculta em Nazaré, Jesus iniciou sua missão de anunciar o Reino de Deus, missão que terminou com a Paixão durante a qual Ele manteve um nobre silêncio humilde e, ao mesmo tempo, superior às cavilações dos homens; cumpriu o papel do Servo de Javé predito por Isaías:

Is 53,7:Foi maltratado, mas livremente humilhou-se e não abriu a boca, como um cordeiro conduzido ao matadouro, como uma ovelha que permanece muda na presença dos seus tosquiadores, ele não abriu a boca”.
Mt 26,62s: “Levantando-se, o Sumo Sacerdote disse-lhe: ‘Nada respondes?’... Jesus, porém, ficou calado”.
Mt 27,14:Jesus não respondeu a Pilatos uma palavra sequer de tal sorte que o governador ficou muito impressionado”. Cf. Jo 19,9.

Com o seu silêncio Jesus assumiu mais plenamente o seu plano de se entregar por amor à humanidade.

Em conclusão verifica-se que não faltam no Novo Testamento recomendações do silêncio como valor construtivo.

Passemos a alguns expoentes da Tradição posterior

3. A Tradição

Entre os mestres de espiritualidade sobressai S. Agostinho (+ 430), do qual vão transcritas algumas reflexões mais significativas.

Deus fala ao homem no silêncio do seu coração: “’Não vos caleis diante de mim; quero escutar-Vos’. Deus fala em segredo, fala ao coração de muitos. Há um grande clamor no grande silêncio do coração, quando Ele diz com voz forte: ‘Eu sou a tua salvação’. Nunca se cale esta voz pela qual Deus me diz: ‘Eu sou a tua salvação, não vos caleis, Senhor, para comigo’” (Comentário ao Sl 38).

Em Confissões IX 10,25 Agostinho refere a intuição mística com que foi agraciado em companhia de sua mãe Santa Mônica em Ostia Tiberina; foi uma ascensão mística que impôs silêncio sucessivamente à carne, à terra, aos céus e à própria alma para escutar o Verbo de Deus:

“Cale-se o tumulto da carne, calem-se as imagens da terra, das águas e dos ares, calem-se os próprios céus e cale-se a alma mesma... para que ouçamos o Verbo não pela linguagem da carne nem pela voz de um anjo... mas Aquele mesmo que amamos através dessas realidades, ouçamo-Lo sem essas realidades”.

São Gregório Magno (+ 504), Papa, observa: “Todas as vezes que, por palavras fúteis, a alma rompe a disciplina do seu silêncio, ela escorre para fora de si mesma, como por filetes de água. Disto se segue a incapacidade de voltar a conhecer devidamente, pois, esparramada pela tagarelice, ela se exclui do colóquio secreto da meditação” (Regula Pastoralis III, 4).

Dentre os monges do deserto sejam citados

O monge Arsênio, que dizia: “Várias vezes arrependi-me de ter falado; nunca porém de me ter calado”.

O monge Pambo confessava: “Pela graça de Deus, jamais tive que me arrepender de alguma palavra que eu tenha dito”.

Poimém lembrava a necessidade de cultivar o silêncio interior além do exterior: “Há quem pareça calar-se, tendo, porém, um coração que condena o próximo; tal homem na verdade está a falar continuamente. Mas também existe aquele que cala da manhã até à noite, guardando o silêncio porque nada diz que não tenha utilidade espiritual”.

Isaque de Nínive, monge do fim do século VII, escrevia; “Ama o silêncio mais do que todas as outras coisas: ele te produzirá um fruto que a língua é incapaz de descrever. Do nosso silêncio nasce algo que nos atrai mais ainda ao silêncio. Que Deus te conceda perceber o que nasce do silêncio!” (De perfectione religiosa 65).

No século XI Guiges II o Cartuxo, escreve: “Quem não observa o silêncio não pode ouvir Aquele que fala... Que a terra de minha alma se cale na tua presença, Senhor, a fim de que eu ouça o que diz em mim o Senhor meu Deus, pois as palavras que Vós murmurais não podem ser ouvidas se não num profundo silêncio” (Meditação 1).

No século XIV diz o autor da “Imitação de Cristo”:É mais fácil calar-se por completo do que falar sem se exceder... Ninguém fala com segurança a não ser aquele que espontaneamente se cala” (I 20,2).

4. Conclusão

Em conclusão pode-se dizer que o silêncio é a primeira atitude que o homem possa assumir diante de Deus, o Inefável (cf. 2Cor 12,4). Esse silêncio é prenhe de significado, podendo mesmo tornar-se louvor ao Eterno.

A palavra brota a partir do silêncio para comunicar aos homens a riqueza de Deus entrevisto na contemplação. Essa comunicação se faz não somente quando o cristão fala de Deus, mas também quando trata de assuntos “profanos”, pois nada é propriamente profano para o cristão; em tudo que ele faz ou diz, constrói o reino de Deus. A quem encontre dificuldades para entender a linguagem teológica responde S. Agostinho:

“Falamos de Deus. Que há de surpreendente se não compreendes? Em verdade, se compreendesses, não seria Deus. Seja a humilde confissão da ignorância mais forte do que a temerária profissão do saber” (In Os. 117, 3,5).


Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.
Revista Pergunte e Responderemos - dezembro 2006

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