"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O purgatório...

Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.

A doutrina do purgatório constitui um dogma de fé que a Igreja ensina por seu constante magistério (Ver Catecismo da Igreja Católica, nº 1031). Vejamos em que consiste.


1) O amor a Deus, num cristão, pode coexistir com tendências desregradas e pecados leves (ao menos, semideliberados). Há, sim, em todo indivíduo humano, um lastro inato de desordem: egoísmo, vaidade, amor próprio, covardia, negligencia, moleza... Tudo isso se acha tão intimamente arraigado no interior do homem que chega, por vezes, a acompanhar as suas mais sérias tentativas de se elevar a Deus e dar a Ele o lugar primacial que Lhe compete. A psicologia das profundidades ensina que essas tendências nem sempre são conscientes, mas muitas vezes atuam no nosso subconsciente ou no inconsciente.

Pecado deixa ferrugem na alma

2) Mais: todo pecado (principalmente quando grave, mas também a falta leve) deixa na alma resquícios de si ou uma inclinação má (metaforicamente: deixa uma cicatriz, deixa um pouco de ferrugem na alma, dificultando-lhe a prática do bem). Com efeito, o pecado implica sempre numa desordem. Quando, após o pecado, a pessoa se arrepende e pede perdão a Deus, o Pai do céu perdoa (o Senhor nunca rejeita a contrição sincera). Mas o amor do pecador arrependido, por mais genuíno e leal que seja, pode não ser suficiente para extinguir todo resquício de amor desregrado e egoísta existente na alma. Em consequência, o pecador arrependido recebe o perdão do seu pecado, mas ainda deve-se libertar da desordem deixada pelo pecado em sua alma. De fato, quantas vezes se verifica que, mesmo após uma confissão sincera e contrita, o cristão recai nas faltas de que se arrependeu!

Isto se deve ao fato de que ficou no seu íntimo a raiz ou o princípio do pecado. Figurativamente, pode-se dizer que o cristão arranca a folha e o caule da tiririca, mas dificilmente arranca também o caroço ou a raiz da mesma; esta se manifesta dentro em pouco, através de novos pecados. Para extirpar o princípio do pecado remanescente, o cristão deve excitar e exercitar mais intensamente o amor a Deus.
Ora esse estímulo do amor a Deus se realiza mediante a satisfação ou atos de penitencia que despertem e fortaleçam o amor a Deus no íntimo do cristão. Notemos bem: a satisfação assim entendida não deve ser comparada a uma multa mais ou menos arbitrária imposta por Deus ou a um castigo vingativo; é, antes, um auxílio medicinal; é também uma exigência do amor do amor do cristão a Deus, amor este que, estando debilitado pode ser corroborado e purificado.
Exprimindo essas verdades em termos precisos, o Concílio de Trento em 1547, frente às objeções protestantes, fez importantes declarações: Rejeitou, por exemplo, a sentença segundo a qual “a todo pecador penitente que tenha recebido a graça da justificação, é de tal modo perdoada a ofensa e desfeita e abolida a obrigação de pena eterna, que não lhe fica pena temporal a padecer ou neste mundo ou no outro, no purgatório, antes que lhe possam ser abertas as portas para o reino dos céus” (DS 1580).

O Concílio de Trento declarou ainda: “No tocante à satisfação, é de todo falso e alheio à Palavra de Deus afirmar que a culpa nunca é perdoada. Com efeito, nas Escrituras Sagradas encontram-se claros e famosos exemplos que... refutam este erro com plena evidência” (DS 1689). A culpa é perdoada, sim. Mas a Escritura mostra que, mesmo depois de perdoada, o Senhor Deus exige satisfação ou reparação da ordem violada pelo pecado.
Esta exigência é facilmente compreensível, se levarmos em conta o seguinte: quem rouba um relógio, pode pedir e receber o perdão do respectivo proprietário, mas este exigirá que a ordem seja restaurada ou que o relógio volte ao seu dono. Da mesma forma, quem difama caluniosamente o seu próximo, pode pedir e receber o perdão deste, mas a pessoa difamada exigirá que se restaure a fama a quem tem direito.
Também os pecados meramente internos (de pensamento e desejo) alimentam ou suscitam desordem interna no pecador, de modo que este precisa restaurar ou introduzir a ordem em seu íntimo, mediante atos de penitência ou renúncia. Tenhamos em vista os seguintes casos: a) Davi, culpado de homicídio e adultério, foi agraciado ao reconhecer o delito; não obstante, teve que sofrer a pena de perder o filho do adultério (cf 2Sm 12,13s); b) Moisés e Aarão cederam à pouca fé em dados na Terra Prometida, embora não haja dúvida de que a culpa lhes tenha sido perdoada (cf Nm 20,12s; 27,12-14; Dt 34,4s).
Em outros casos, o perdão é estritamente associado a obras de expiação. Assim o profeta Joel, com a conversão do coração, exige jejum e pranto (cf Jl 2,12s); o velho Tobit ensina a seu filho que a esmola o libertará de todo pecado e da morte eterna (cf Tb 4,11s); algo de semelhante é anunciado por Daniel ao rei Nabucodonosor (cf Dn 2,24).

A seguir: Desordem para o próximo e o mundo

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