Algumas pessoas afirmam que a Bíblia fala em próximo Reino
de Cristo sobre a Terra, que deverá durar mil anos, durante os quais haverá
bonança e paz. O que nós, católicos, devemos pensar a respeito?
Dom Estêvão responde:
1.
Milenarismo: que é?
Os teólogos católicos assim costumam reconstruir a série dos
acontecimentos finais da História:
1)
segunda vinda de Cristo em glória e majestade (a
assim chamada “parusia”
2)
ressurreição de toda carne;
3)
juízo universal ou final;
4)
vida ou frustração definitiva.
Eis, porém, que o texto de Ap 20,1-15 deu ocasião a uma
diferente concepção dos acontecimentos finais. Já no início da era cristã,
alguns escritores da Igreja construíram o seguinte sistema escatológico:
1)
segunda vinda de Cristo em glória e majestade;
2)
primeira ressurreição (para os justos apenas);
3)
juízo universal;
4)
reino messiânico de mil anos ou milenário
(estando Satanás impedido de agir sobre a Terra);
5)
ressurreição segunda ou geral (para os demais
homens)
6)
juízo final;
7)
prêmio ou punição definitiva.
Esse é o chamado sistema milenarista. Reparemos que a
primeira ressurreição será concebida unicamente aos justos. Ressuscitados,
estes se assentarão com Cristo como assessores no juízo, que logo a seguir se
efetuará. Este juízo é dito “universal”, porque serão julgados os povos como
coletividades, e não os indivíduos de “per si”.
Após tal solene julgamento,
será inaugurada uma fase de mil anos ou mais. Nesta fase, estando Satanás impedido
de exercer sua ação nociva, os justos ressuscitados reinarão com Cristo na
cidade de Jerusalém, renova e gloriosa, gozando de toda bonança; em torno
deles, no restante do mundo, viverão os homens ainda não ressuscitados,
usufruindo de melhores condições de vida do que nos tempos anteriores à segunda
vinda de Cristo. Terminado tal período, Satanás moverá a última perseguição contra
o Reino de Cristo, e será definitivamente derrotado. Haverá, então, a ressurreição
segunda, a dos homens que não tiverem tomado parte na primeira, e se dará o juízo
final de cada indivíduo em particular, juízo em que Cristo não terá assessores,
mas examinará tanto os pecadores como os justos. Este julgamento final é também
dito “juízo dos mortos”, enquanto o anterior (o universal) é chamado também “juízo
dos vivos”.
Eis os traços característicos do milenarismo. Mas nem todos
os pontos do sistema são devidamente esclarecidos pelos seus defensores: não é
indicado, por exemplo, que tipo de relações terão entre si os homens ressuscitados
e os não-ressuscitados; como poderá o exercito diabólico fazer a guerra ao
Reino de Cristo glorioso etc.
2.
Fundamentos do Milenarismo
O sistema milenarista pretende apoiar-se em textos do Antigo
Testamento. Com efeito, os profetas de Israel propuseram a vinda do Messias
como início de uma era de grande prosperidade para o povo de Deus (ver Is
9,1-6; 11,1-9; 54,2s; 60,1-22; Ez 40,1-48,35; Dn 7,1-28; 12,1-13 etc). Os
escritores judaicos subsequentes, autores de livros apócrifos, deram colorido
muito vivo a essas profecias: descreveram o reinado do Messias como período de
abundancia e felicidade material neste mundo; os homens viveriam um número de
anos maior do que a cifra de seus dias de outrora: “Não haverá mais ancião, ninguém
que não seja saciado de dias; serão todos crianças e jovens”.
Enquanto alguns judeus identificavam esse bem-estar terrestre
com a bem-aventurança definitiva do homem, outros lhe assinalavam um termo após
o qual se dariam o juízo final e a consumação de todas as coisas. A duração do
Reino messiânico assim concebido era, não raro, calculada em função dos sete
dias em que se julgava ter sido criado o mundo: a história anterior ao Messias
se estenderia por seis mil anos; o sétimo milênio seria o período do Reino messiânico,
em que os justos neste mundo gozariam de repouso e bem-estar, paralelos ao
repouso de Deus após a obra da criação; terminados os sete milênios, se daria
finalmente a entrada de cada criatura no seu estado definitivo.
3.
3. Modalidades do Milenarismo
O Milenarismo se apresenta sob duas modalidades:
1)
o Milenarismo grosseiro, que faz consistir a
bem-aventurança do Reino terrestre de Cristo nos prazeres da carne: uso e abuso
do matrimônio, da comida e da bebida etc. Esta forma foi propagada por hereges
do século II d.C., e mereceu a condenação unânime dos doutores da Igreja. Depois
de ter caído em esquecimento a partir do século III, a teoria foi ressuscitada
por inovadores religiosos dos tempos modernos;
2)
o Milenarismo espiritual ou mitigado, que
concebe a felicidade em ermos mais dignos: afirma que os justos, após a ressurreição
primeira, já não se casarão nem serão sujeitos à fome ou à dor, segundo o que
diz Jesus em Lc 20,35. Nos primeiros séculos, o Milenarismo esprititual era
professado por vários escritores da Igreja. Santo Agostinho (+ 430), depois de
ter aderido a ele em seus primeiros escritos, propôs novo modo de entender o Ap
20, excluindo o Reino milenário. A autoridade deste mestre fez com que o
sistema caísse em descrédito na são Tradição cristã; defenderam-no, porém, na
Idade Média, escritores “iluminados”, fanáticos e outros ainda mais recentes. Estes
reivindicam para sua doutrina o nome de “Milenismo”, para se diferenciarem
devidamente do Milenarismo crasso.
O Magistério da Igreja tem-se mostrado desfavorável a
qualquer forma de Milenarismo, professando a sequência de acontecimentos que
propusemos no início deste artigo.
4.
Como entender Ap 20?
Após Santo Agostinho, a interpretação mais comum dada a Ap
20 é a seguinte:
Consideremos tal texto à luz de um paralelo encontrado em
outra obra de São João (autor do Apocalipse), que é Jo 5,25-29): “(25) Em
verdade, em verdade vos digo: vem a hora – e é agora – em que os mortos ouvirão
a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem, viverão... (28) Não vos admireis
por isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros, ouvirão a voz
(29) e sairão; os que tiverem feito o bem, pra uma ressurreição de vida; os que
tiverem cometido o mal, para uma ressurreição de julgamento”.
Como se vê, São João fala aí de duas ressurreições, como
também em Ap 20. A primeira ressurreição se dá agora (v. 25º, ao passo que a
outra não ocorre agora (v. 28).
Como entender essa duas ressurreições?
- A primeira é sacramental; é a passagem da morte espiritual
para a vida espiritual cristã mediante o Batismo. Esta se dá agora, isto é, no
decorrer da história da Igreja. A outra será a ressurreição corporal, que
ocorrerá no fim dos tempos, consumando a ressurreição sacramental.
Ora, a primeira ressurreição de que fala Ap 20 vem a ser a
primeira ressurreição de Jo 5,25: é batismal. A segunda ressurreição (ver Ap
20,13) se identifica com a ressurreição corporal a que se refere Jo 5,28. Entre
a ressurreição batismal, que ocorre em cada cristão batizado, e a ressurreição corporal,
o Apóstolo coloca um Reino de Cristo milenar sobre a Terra, estando Satanás
acorrentado. Esse milênio significa o tempo da Igreja (que vai para dois mil
anos!),* na medida em que é um tempo penetrado pela vitória de Cristo sobre o
pecado (mil tem um simbolismo de bonança); Satanás é, conforme Santo Agostinho,
um cão acorrentado que pode ladrar, mas não pode morder senão a quem chega
perto dele.
No fim dos mil anos de Ap 20,7, ou seja, no fim da história
da Igreja, se dará o assalto final de Satanás contra os membros da Igreja, a
fim de os arrebatar para o mal. Mas o Senhor Jesus virá na sua glória e os
mortos ressuscitarão (ressurreição segunda) todos para o juízo universal. A segunda
morte, de que fala Ap 20,6, é a morte espiritual ou a ruína definitiva no
inferno.
Eis, esquematicamente, o paralelismo:
Jo 5,25 - ressurreição 1ª ---------------------- Jo 5,28 – ressurreição
2ª
Mil anos de reinado de Cristo sobre a Terra
(o penhor da Vida Eterna nos foi dado: Ef 1,14)
Ap 20,5 – ressurreição 1ª ---------------------- Ap
20,13 – ressurreição 2ª
Por conseguinte, carecem de fundamento sólido as férvidas
expectativas de próxima vinda de Cristo à Terra para instaurar um Reino milenar
de paz e bonança.
Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.
Católicos perguntam
_________
* Observação do autor do Blog: Este texto é escrito
antes da virada do milênio.
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