Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.
Dissipe-se toda concepção de que o purgatório está sujeito às dimensões de espaço e tempo. O purgatório é, sem dúvida, uma realidade, todavia não ligada a topografia e cronologia. O Papa Alexandre VII (1655-1667) rejeitou a opinião segundo a qual ninguém fica mais de vinte anos no purgatório; intencionava assim remover a ideia de duração cronológica do purgatório. Neste, o que conta é o grau de intensidade, responsabilidade e profundidade dos atos da criatura.
Em termos mais positivos, diga-se:
Em termos mais positivos, diga-se:
1) O amor a Deus, em um cristão, pode coexistir com tendências desregradas e pecados leves ao menos semideliberados. Há, sim, em todo indivíduo humano um lastro inato e multicolor de desordem: egoísmo, vaidade, obcecação, covardia, negligência, moleza, infidelidade... Acham-se tão intimamente arraigados no interior do homem que chegam por vezes a acompanhar as suas mais sérias tentativas de se elevar a Deus e de dar a Deus o lugar primacial que lhe cabe na criatura. A psicologia das profundidades dá a saber que essas tendências nem sempre são conscientes, mas muitas vezes atuam no nosso subconsciente ou no inconsciente.
2) Mais: todo pecado (principalmente quando grave, mas também a falta leve) deixa na alma um resquício de si ou uma inclinação má (metaforicamente: ... deixa uma cicatriz, deixa um pouco de ferrugem na alma, dificultando-lhe a prática do bem). Com efeito, o pecado implica sempre uma desordem. Quando, após o pecado implica sempre uma desordem. Quando, após o pecado (grave ou leve), a pessoa, movida por arrependimento, pede perdão a Deus, o Pai do céu perdoa; o Senhor jamais rejeita uma contrição sincera. Todavia o amor do pecador arrependido, por mais genuíno e leal que seja, pode não ser suficientemente intenso para extinguir todo resquício de e concupiscência existente na alma. Em consequência, o pecador arrependido recebe o perdão do seu pecado, mas ainda deve prestar satisfação pelo mesmo. Essa satisfação não há de ser comparada a uma multa mais ou menos arbitrária imposta por Deus ou a um castigo vingativo; ela não é senão uma exigência do amor da alma a Deus, amor que, estando debilitado, pode ser corroborado e purificado.
Exprimindo tal realidade em termos precisos de teologia e direito, o Concílio de Trento em 1547 fez importantes declarações. Rejeitou, por exemplo, a sentença segundo a qual “a todo pecador penitente que tenha recebido a graça da justificação, é de tal modo perdoada a ofensa e desfeita e abolida a obrigação de pena eterna que não lhe fica pena temporal a padecer, ou neste mundo ou no outro, no purgatório, antes que lhe possam ser abertas as portas para o reino dos céus” (D.S. nº 1580 [840]).
O Concílio de Trento declarou ainda:
Assim o velho Tobias ensina a seu filho que a esmola o libertará de todo pecado e da morte eterna (cf. Tb 4,11s). algo de semelhante é anunciado por Daniel ao rei Nabucodonosor (cf. Dn 4,24).
O Profeta Joel, junto com a conversão do coração, exige jejum e pranto (cf. Jl 2,12s).
3) Leve-se em conta também que, mesmo após haver recebido o perdão de seus pecados, o homem fica sendo responsável pela desordem que o pecado geralmente acarreta para o próximo e o mundo. As palavras e as ações de um homem têm frequentemente dimensões muito mais amplas do que as do momento presente; seus efeitos escapam às previsões e ao controle de quem as produz. Não é raro que no decorrer de sua peregrinação terrestre o homem deixe marcas de sua atividade que continuarão atuantes mesmo depois da morte do respectivo sujeito.
A justa satisfação pode ser prestada pela criatura ou na vida presente (processo este que é normal e deveria ser considerado por todos os cristãos como programa de vida aqui na terra); o penitente então se empenha corajosamente por livrar-se de suas tendências desregradas e tornar puro o seu amor a Deus e ao próximo. Ou, se não o consegue nesta peregrinação (por motivo de covardia, tibieza ou outro qualquer), compreende-se logicamente que deverá chegar a essa pureza na vida póstuma antes de entrar na visão face-a-face de Deus. Então a criatura se arrependerá por ter condescendido com a moleza e a indefinição; a alma terá consciência de que devia ter sido mais coerente e menos leviana; tomará consciência de que foi cercada pelo amor de Deus no decorrer de toda a sua vida e o ignorou ou esbanjou (amarga consciência). Esta verificação não poderá deixar de lhe ser dolorosa, de mais a mais que alma perceberá que, por causa de sua indefinição na terra, lhe será diferida ou postergada a entrada no gozo definitivo de Deus; ser-lhe-á duro averiguar que faltou ao encontro marcado com Deus, justamente após a morte, quando os fieis mais fome e sede têm de Deus.
Aprofundando as ideias acima, pode-se dizer: é devagar ou lentamente que o homem se torna, segundo todas as dimensões do seu ser, o que ele já é no “núcleo” de sua personalidade. Em outros termos: uma decisão generosamente abraçada pela vontade do homem¹ não costuma penetrar e mover instantaneamente todas as camadas da personalidade; ela muitas vezes encontra, no fundo da consciência ou também no inconsciente do indivíduo, uma resistência mais ou menos tesa, resistência que provém de atos e hábitos do passado do sujeito. É essa resistência que deve ser vencida, de modo a exigir da alma o empenho cada vez mais enérgico do seu amor a fim de que este penetre toda a respectiva personalidade.
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¹ Decisão de levar vida nova, amar mais autenticamente, despertar a fé amortecida.
A seguir: Noções complementares
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