"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Purgatório - Espórtulas ou honorários


Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.

1. Nos primeiros decênios do Cristianismo, por motivos diversos, era costume só se celebrar uma S. Missa em cada igreja por domingo ou por dia. Então todos os fieis manifestavam sua participação na Missa oferecendo o pão e o vinho do rito sagrado ou ouras dádivas naturais (trigo, uvas, óleo, leite, mel, frutas...) destinadas ao sustento do clero e dos irmãos necessitados. Os cristãos se empenhavam generosamente por fazer sua oblação na S. Missa.

Aos poucos o número de presbíteros e de fieis foi-se aumentando, de sorte que uma só Missa não bastava em cada igreja para satisfazer às necessidades e à devoção do povo de Deus. Em consequência, tornou-se impossível que todos os fieis oferecessem sua oblação em cada S. Missa. Mais ainda: o número de celebrações eucarísticas se foi aumentando para atender a intenções próprias de um cristão ou de uma comunidade em particular: por benefícios recebidos, súplicas especiais... As Missas assim celebradas eram chamadas votivas. Por ocasião destas, os fieis interessados é que ofereciam a matéria do sacrifício eucarístico, ao mesmo tempo que indicavam a intenção pela qual seria oferecida a S. Missa.

2. Quanto à oferta de dinheiro na Igreja, pode-se notar o seguinte:

Nas igrejas antigas havia geralmente um tronco ou um cofre destinado a receber as esmolas dos fieis que beneficiariam os ministros do altar e os pobres da comunidade eclesial. Ainda nos século IV, S. Agostinho, fazendo eco a testemunho de bispos e escritores anteriores, atesta o costume de se darem esmolas em dinheiro no cofre de cada igreja.

Aos poucos as oblações de dons naturais feitas por ocasião da S. Missa foram sendo, em parte, substituídas pela oferta de dinheiro. Os motivos para tanto foram vários: era mais fácil manipular o dinheiro do que o pão, vinho, óleo, leite, frutas (simplificava-se e facilitava-se assim a procissão de ofertório); o número de comunhões foi diminuindo a partir do século IV, de modo que se tornaram desnecessárias grandes ofertas de pão e vinho (aos pobres da paróquia se poderia atender mediante dinheiro, e não necessariamente dons naturais). S. Agostinho refere que, em certos lugares, se levavam quantias de dinheiro ao altar por ocasião do ofertório das Missas por defuntos.

A princípio, essas oblações monetárias destinavam-se a toda a comunidade paroquial, e não ao sacerdote pessoalmente. A partir do século VIII, há testemunhos explícitos de que a esmola era dada ao sacerdote celebrante, para que este aplicasse a S. Missa pelas intenções do doador. Assim, por exemplo, o artigo 42 da Regra dos Cônegos de S. Crodegango, bispo de Metz (743-766), autoriza o sacerdote a receber uma esmola (eleemosyna) por sua Missa (pro missa sua). Há indícios, porém, de que esta praxe é mais antiga, indícios recolhidos por De Berlendis, “De oblationaibus ad altare”, part. II § 2, Veneza 1743, pp. 289-299. Vejam-se os seguintes:

S. Beda Venerável (+ 735) refere que, em 679 aproximadamente, os fieis fora da Missa davam aos sacerdotes uma esmola a fim de que celebrassem a Eucaristia para impetrar determinada graça (espiritual ou temporal).

S. João, o Esmoler, bispo de Alexandria (610-616), a pedido de um pai de família, celebrou uma S. Missa para obter a volta de seu filho afastado de casa (graça esta que, realmente, foi obtida).

Ultrogota, esposa do rei Quildeberto (511-518), deu esmola junto ao túmulo de S. Martinho de Tours, pedindo a celebração de Missas.

S. Bento (547) por suas próprias mãos deu a um sacerdote uma esmola destinada à celebração de uma Missa por duas monjas (“Diálogos” II 23).

Segundo S. Epifânio (+ 403), um judeu convertido em 347 entregou dinheiro ao bispo que o batizava, dizendo-lhe: “Oferece por mim”.

No século XI o costume de dar ao sacerdote celebrante uma esmola era muito comum, pois até mesmo as crianças o conheciam. As crônicas narram, por exemplo, o seguinte episódio: S. Pedro Damião, ainda menino, tendo encontrado uma moeda, apressou-se por levá-la a um sacerdote, a fim de que este celebrasse uma Missa pelo repouso da alma de seu pai falecido (“Vita Sancti Petri Damiani per Joannem monachum eius discipulum”, c. II PL CXLIV, col. 117).

Sabe-se também que no século IX eram tão frequentes os donativos em dinheiro para obter a celebração de S. Missa em favor de intenções particulares (sufrágio de defuntos ou por outras intenções) que dois Concílios regionais em Roma, respectivamente nos anos de 826 e 853, recomendaram aos sacerdotes não recebessem na igreja ou em recinto sagrado os numerosos fieis que se interessavam por oferecer seu óbulo (espórtula) e pedir a celebração da S. Missa, por determinada intenção. As autoridades da Igreja também pediam aos sacerdotes que não aceitassem mais de uma espórtula por Missa nem assumissem compromissos de celebração de Missa que não pudessem cumprir.

3. No decorrer dos séculos, principalmente nos séculos XV, XVI e XVIII, levantaram-se vozes que acusavam de simonia ou mercantilismo a praxe das espórtulas. S. Tomás de Aquino (S. Teol. II/II, qu. 100, art. 2) e os teólogos em geral explicam que tal suspeita é infundada. Na verdade, a espórtula não é o preço da Missa; ela não significa “troca de bens materiais por realidades espirituais”. Positivamente, ela exprime a fé e a generosidade cristãs de quem a oferece; ela significa mais íntima participação do doador na celebração da S. Missa. Em consequência dessa mais íntima participação, compreende-se que o doador tenha parte também mais intima e ampla na aplicação dos frutos da S. Missa; a intenção ou as intenções por ele indicadas são especialmente beneficiadas pela celebração da S. Eucaristia (o Senhor atende aos seus fieis na proporção das disposições com que estes O invocam). É, pois, como símbolo de fé e generosidade que se deve considerar a espórtula da S. Missa. É para desejar que quem oferece a espórtula, o faça em profundo espírito religioso, lembrando-se de que assim participa de maneira especial da oblação e, por conseguinte, também dos frutos da S. Missa (seria altamente oportuno que os doadores de espórtula não se limitassem a dá-la mas estivessem presentes à celebração mesma da S. Missa). Deve-se lamentar que a consciência disto nem sempre se encontre viva nas pessoas que pedem a celebração da Missa; muitos são aqueles que apenas dão sua espórtula, sem comparecer posteriormente ao ato litúrgico (quando bem o poderiam fazer).

O Direito da Igreja, no cânon 947, reza: “É preciso afastar da prática das espórtulas da Missa tudo que tenha sabor de comércio ou mercantilismo”. A S. Igreja, mediante minuciosas prescrições, tem-se mostrado assaz severa no cumprimento deste cânon.

4. A prática das espórtulas se justifica por ser um dos meios de manutenção das paróquias e do clero. Já que a Igreja não pode dispensar subsídios financeiros pra realizar sua obra evangelizadora, as espórtulas atendem (assaz exiguamente, aliás) a tal necessidade. Hoje em dia, porém, conscientes de que tal praxe nem sempre é entendida por cristãos ou não cristãos, muitos sacerdotes e bispos vão dispensando espórtulas e taxas do culto, e procuram prover por outras vias aos interesses pecuniários da S. Igreja.

Vê-se, pois, que o costume de mandar celebrar a S. Missa pelos defuntos (oferecendo-se mesmo uma espórtula por ocasião do ato litúrgico) nada tem de interesseiro ou indigno. Não se deve a visão deturpada da mensagem evangélica, mas, ao contrário, deriva-se das linhas centrais da Revelação bíblica e, em particular, do Novo Testamento.

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