"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Era Constantiniana - continuaçao ...

Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.

II

Deve-se todavia reconhecer que as boas graças do Imperador para com a Igreja tiveram, para esta, não somente consequências positivas, mas também incidências negativas e penosas, que inevitavelmente decorriam da fragilidade humana. Seja citado, por exemplo, o fato de que muitos cidadãos se converterem à fé cristã sem ter as devidas convicções; as vantagens, repentinamente outorgadas aos cristãos em lugar das perseguições, ocasionaram em muitos a tibieza e o aburguesamento.

Mais ainda: Constantino, em seu zelo de Imperador cristão, fazia as vezes de “epískopos (= superintendente, vigia) de fora” – o que quer dizer: arrogava a si o direito de intervir em assuntos internos da Igreja, que escapavam à sua alçada. Com efeito, disse certa vez o Imperador a Bispos reunidos num Concílio regional: “Vós sois epískopoi (bispos) daqueles que estão dentro da Igreja; eu, porém, fui constituído por Deus epískoós (= vigilante) daqueles que estão fora da Igreja” ¹  Propriamente o que Constantino queria afirmar com tais palavras, é que se considerava encarregado das populações ainda não cristãs, às quais deveria levar o Evangelho; através desse encargo, porém, ele se julgava habilitado a orientar até mesmo as controvérsias teológicas.

Houve prelados que se prestaram a secundar as pretensões do Imperador, movidos por atitude subserviente para com o “Grande Protetor”; a liberdade subitamente concedida por Constantino à Igreja deslumbrou os cristãos e os tornou propensos não somente a obedecer ao Imperador, mas, por vezes, também a pedir a intervenção do mesmo em questões religiosas (como fizeram, por exemplo, os donatistas, hereges do Norte da África). Estes fatos se tornaram nocivos à Igreja oriental no decorrer dos séculos IV/VI; no Ocidente, o mesmo não ocorreu, pois as populações ocidentais não mereciam os cuidados dos Imperadores bizantinos; estes chegavam a desprezá-las, de sorte que a Igreja latina pôde com liberdade seguir o seu curso de expansão e implantação. O fato de ter Constantino transferido a capital do Império de Roma para Bizãncio em 330 tornava Roma, a sede de Pedro e de seus sucessores, isenta do influxo imperial ou mesmo apta a se opor a este quando exorbitava. A propósito tenha-se em vista o que aconteceu por ocasião das controvérsias teológicas dos séculos IV-VII (Roma sempre resistiu às fórmulas de fé forjada pelos Imperadores); considere-se outrossim o episodio do Imperador Teodósio, que, censurado por S. Ambrósio, bispo de Milão, por causa de injusto morticínio cometido em Tessalônica, se submeteu à penitência pública e foi absolvido como qualquer frágil criatura no Natal de 380.

A ingerência dos Imperadores bizantinos nos assuntos internos da Igreja, de um lado, e, de outro lado, a subserviência de Bispos orientais são males que tiveram início sob o reinado de Constantino. Faz-se mister reconhecê-los como tais; ao mesmo tempo, porém, deve-se afirmar que não deturparam a estrutura e a doutrina da Igreja.  A mensagem do Evangelho foi, através de tais vicissitudes, vivida pelo povo de Deus de modo a poder transmitir-se íntegra às gerações subsequentes.

O fato de terem cooperado entre si a Igreja e o Império não é um mal em si; não há por que rejeitar de antemão o bom entendimento entre aquela e este, a menos que se professe um maniqueísmo sócio-político. Se um Imperador se diz católico e nada prova que não é sincero, a Igreja tem o direito e o dever de contar com ele como um filho seu, a quem compete proclamar o Evangelho a partir do trono imperial.

Encerrando este estudo da era constantiniana, pode-se aqui transcrever a ponderação do conceituado historiador J.-R. Palanque:

“Terminando a história do século IV, é-nos mister indicar os felizes efeitos obtidos através da união da Igreja e do Estado selada no tempo de Teodósio (380). O absolutismo imperial, cujas arbitrariedades por vezes sanguinárias e opressoras eram alimentadas pela adulação de uma corte subserviente, foi limitado pela intervenção dos Bispos; já se disse com razão que o poder e a liberdade do clero se tornaram a garantia da liberdade pública e do direito (cf. H. von Campenhausen, Ambrosius von Mailandi, p. 271). Visto que o Imperador estava ‘dentro da Igreja’, estava sujeito, como todos os fieis, aos deveres que o Evangelho impõe. O governo dos monarcas cristãos era, sem dúvida, mais liberal, mas humanitário, do que o dos Imperadores pagãos. Além do mais, ao aceitarem o primado do espiritual, os príncipes cristãos se empenharam por impregnar as leis com os princípios da Moral cristã, que Constantino começara a instalar no Direito romano. Foram editadas novas leis que puniam severamente a delação, a difamação, a usura, a venda de crianças, os excessos da soldadesca... Nessa sociedade romana, os costumes eram frequentemente brutais e grosseiros. Mas em tal setor as transformações profundas não são obra de um dia. Basta que no século IV tenham brotado alguns germens, que haveriam de frutificar mais tarde. Entre estes, o mais fecundo foi talvez a conversão progressiva e total dos Imperadores à fé de Cristo, e, em consequência, a integração da Igreja Católica, livre de heresias, no Estado; este a patrocinou oficialmente e, ao menos por certo tempo, se pôs humildemente a serviço da Igreja. O século IV, inaugurado pela conversão de Constantino, terminou com a penitência de Teodósio: estes dois acontecimentos, tão cheios de consequências, lhe conferem a sua verdadeira grandeza” (Fliche-Martin, Histoire de l’Englise, vol. 3, Paris 1950, pp. 524s).
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¹ A palavra grega epískopos significa originariamente “vigilante” ou “superintendente”. Foi assumida pelos cristãos para designar o vigilante credenciado pela sagrada ordem do episcopado. A frase de Constantino joga com o duplo sentido da palavra.

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