"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Era Constantiniana


Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.

Não raro ouve-se dizer que a era do Imperador Constantino (313-337) contribuiu para deturpar a Igreja, levando-a a adotar concepções e costumes do paganismo. Visto que Constantino deu liberdade aos cristãos e quis fazer as vezes de Imperador cristão, terá paganizado a Igreja, em vez de ser cristianizado por Ela.

Para julgar tal afirmação, faz-se mister possuir uma visão ampla e precisa da administração governamental de Constantino e das atitudes da Igreja na época – conhecimentos estes de que nem todos dispõem.
Eis por que tais elementos são abaixo oferecidos ao leitor.

I

Em 313 o Imperador Constantino, mediante o edito de Milão, concedeu a paz aos cristãos, pondo fim à era das perseguições. De então por diante, foi-se voltando cada vez mais para a Igreja e suas expressões, favorecendo de diversas maneiras a expansão do Cristianismo; a trajetória, religiosa de Constantino só terminou no leito de morte, onde pediu e recebeu o sacramento do Batismo (337). Grande número de Bispos houve por bem aceitar o apoio e as boas graças do Imperador que seria lícito, para o futuro, fazer testamentos em benefício da Igreja; os Bispos poderiam exercer ocasionalmente a jurisdição civil; aos judeus era proibido apedrejar aqueles que se quisessem converter ao Cristianismo...

O Imperador em circunstâncias diversas proclamou sua fidelidade ao Cristianismo; assim dizia em 315: “Dedico pleno respeito à regular e legítima Igreja Católica” e vinte anos mais tarde: “Professo a mais santa das religiões... Ninguém pode negar que sou um fiel servidor de Deus”.¹

Não há dúvida de que Constantino simultaneamente favorecia o exercício dos cultos pagãos do antigo Império; ele mesmo trazia o título de “Grande Pontífice”, que havia caracterizado seus antecessores. Julgam bons historiadores que o Imperador Constantino conservava funções e atitudes do paganismo por motivos políticos e diplomáticos mais do que por convicção íntima; parece que tinha a consciência reta ou bem intencionada, mas uma formação doutrinária eclética ou incompletamente cristã e sujeita a temores supersticiosos. Além disto, deve-se reconhecer que os instintos de violência persistiam na alma de Constantino apesar de sua adesão ao Cristianismo; foi, por exemplo, autor dos morticínios de seu filho Crispo e de sua esposa Fausta.

Como quer que seja, o Imperador, com todas as suas falhas, procurou aplicar os princípios do Evangelho à legislação do Império: o domingo, dia do Sol para os pagãos, consagrado pelos cristãos ao Senhor Jesus Ressuscitado, foi equiparado às feriae (dias festivos) do Império Romano. O suplício da cruz foi proibido, pois a Cruz se tornara um símbolo sagrado (Constantino tinha em seu palácio de Bizâncio um oratório particular, ornamentado apenas com uma cruz, diante da qual ele orava longamente); foi também proibido marcar o rosto dos condenados à morte com ferro incandescente, pois, dizia o texto da lei, “o semblante do homem foi feito à semelhança da Beleza Divina”. Constantino também remodelou certas estruturas da sociedade; reorganizou a família e diminuiu o poder, outrora absoluto do paterfamilias; mandou socorrer as crianças abandonadas; mitigou as condições de trabalho dos escravos, reconhecendo-lhes igualdade moral com os demais homens e facilitando o resgate dos mesmos;² um escravo não poderia ser separado da esposa e dos filhos, segundo a lei.

O Imperador também teve a intenção (que seus antepassados já haviam manifestado e seus sucessores sistematizaram em leis) de fixar o camponês na sua terra, o funcionário na sua função própria, o artesão no seu artesanato; tal era o único recurso que o Estado podia conceber para impedir a vida nômade das populações amedrontadas pelos impostos, pela insegurança da vida campestre e pela desagregação das agremiações ou coletividades. Assim se preparava a instituição medieval dos servos da gleba postos sob a tutela de um senhor feudal, instituição que na época estava longe de ser um malefício, pois era a única forma de garantir proteção, paz e segurança às populações campestres ameaçadas por hordes guerreiras e invasões bárbaras.

No plano moral, Constantino também quis defender a reta ordem e a sociedade: promulgou leis contrárias ao adultério, à manutenção de concubinas por parte de homens casados, ao rapto de mulheres, à entrega de filhas à prostituição por parte dos genitores. A fim de prestigiar tal legislação, Constantino manteve para os adúlteros, os raptores e os proxenetas as severas penas que ele aboliu na repressão aos ladrões e aos bandidos. O monarca tentou, outrossim, suprimir, nos espetáculos de circo, as representações sangrentas ou obscenas, embora não o tenha conseguido.

Tais medidas não resultaram numa cristianização perfeita da sociedade, mas inegavelmente contribuíram para uma transformação valiosa da mesma segundo os princípios do Evangelho; aos poucos, no decorrer dos cem próximos anos, os costumes do paganismo iriam cedendo aos do Cristianismo; a sociedade pagã se tornaria (tanto quanto possível à fraqueza humana) uma sociedade cristã; o Império pagão se faria Império cristão (dir-se-ia sob Carlos Magno em 800; “o Sacro Império Romano da Nação Franca”). O domingo e as grandes festas da Liturgia – Páscoa, Pentecostes e Natal – tomariam o lugar das festas pagãs. A face visível das cidades foi-se transformando: em muitos lugares ergueram-se igrejas de grandes dimensões – as ditas “basílicas constantinianas” -, que faziam a antiga arquitetura romana servir ao culto do verdadeiro Deus; nas esquinas e encruzilhadas das ruas as estátuas de divindades pagãs, foram substituídas por oratórios de Santos. A arte cristã saiu das catacumbas para se expandir em plena luz. No linguajar de cada dia as palavras e expressões cristãs se multiplicaram, os nomes próprios foram sendo sempre mais os de mártires e Santos.
Mediante a sua legislação social, Constantino contribuiu para salvar da caducidade e da ruína a própria civilização romana; as bases desta achavam-se abaladas e sem vitalidade; foi o Cristianismo, injetado por uma nova legislação a partir de Constantino, que salvou da dissolução a cultura antiga.  Assim procedendo, Constantino lançou os fundamentos de uma civilização cristã, com a qual sonhou posteriormente S. Agostinho (+430) na sua obra monumental sobre “A Cidade de Deus” e que os Imperadores carolíngios (século IX) e otônicos (século X), com seus predicados e suas deficiências, procuram realizar em colaboração com o Papado.

A seguir: II
Consequências positivas e penosas para a Igreja, decorrentes da fragilidade humana...
__________
¹ Textos transcritos da obra de Daniel-Rops, L’Eglise des Apôtres et des Martyrs. Paris 1948, p. 495

² Segundo alguns historiadores, Constantino terá pensado em abolir por completo a escravatura. Apenas terá recuado diante das necessidades econômicas: o tipo de civilização da época entraria em colapso total se não fosse a mão-de-obra escrava. O próprio S. Agostinho, no fim do século IV, reconhecia a escravatura como fato contra o qual nada se podia fazer. Era preciso esperar que os tempos ainda evoluíssem e oferecessem aos homens novos dados para que percebessem, em termos concretos e práticos, que todos são iguais diante de Deus e, por isto, gozam dos mesmos direitos básicos na sociedade.

Nenhum comentário: