"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Um Deus-Amor: Então, por que tanto mal?


Pergunta

Grandiosas perspectivas, fascinantes, e que para as pessoas de fé são certamente novas confirmações de sua esperança.

No entanto, não podemos ignorar como em todos os séculos também os cristãos, na hora da provação, fizeram a si mesmos uma pergunta atormentada. Como se pode continuar confiando em Deus que seria Pai misericordioso, em um Deus que – como revela o Novo Testamento e como Sua Santidade, apaixonadamente repete – seria o próprio Amor, diante do sofrimento, da injustiça, da doença, da morte, que parecem dominar a história universal do mundo, e a pequenina, cotidiana história de cada um de nós?

Resposta

Stat crux dum volvitur orbis (A cruz permanece firme, enquanto o mundo gira). Como já afirmei antes, estamos justamente no centro da história da salvação. Você não poderia naturalmente esquecer aquilo que é fonte de dúvidas que sempre voltam de novo, não somente quanto à bondade de Deus, mas quanto à Sua própria existência. Como é que Deus permite tantas guerras, os campos de concentração e o holocausto?

O Deus que permite tudo isso é ainda verdadeiramente Amor, como o proclama São João na sua Primeira Carta? Será que Ele é justo para com Sua criação? Não coloca pesos demasiados sobre os ombros dos seres humanos? Não deixa o homem sozinho com esses pesos, condenando-o a uma vida sem esperança? Quantos doentes incuráveis nos hospitais, quantas crianças deficientes, quantas vidas humanas totalmente fora da geral felicidade humana aqui na Terra, da felicidade que provém do amor, do casamento, da família! Tudo isso junto cria um quadro sombrio, que encontra sua expressão na literatura antiga e moderna. Basta lembrar Fiodor Dostoievsky, Franz Kafka ou Albert Camus.

Deus criou o homem dotado de razão e liberdade e, por isso mesmo, submeteu-se ao juízo dele. A história da salvação é também a história do incessante juízo do homem sobre Deus. não simplesmente das perguntas e dúvidas, mas de um verdadeiro juízo no sentido pleno do termo. Em parte, o “veterotestamentário” Livro de Jó é o paradigma deste juízo. A isso vem somar-se a intervenção do espírito maligno, que com perspicácia maior ainda se acha disposto a julgar não só o homem, mas também a ação de Deus na história da humanidade. É o que o próprio Livro de Jó confirma.

Scandalum crucis, o escândalo da Cruz. Nas perguntas precedentes, você havia colocado em precisão o problema: era necessário para a salvação do homem que Deus entregasse o Filho à morte na Cruz?

Tomando com pano de fundo aquilo sobre o que refletimos até aqui, devemos perguntar-nos: poderia ter sido de outro modo? Poderia Deus, digamos assim justificar-se diante da história da humanidade, tão cheia de sofrimento, de outro modo senão pondo no centro dessa história justamente a Cruz de Cristo? Claro que uma resposta poderia ser: Deus não precisa justificar-se diante do homem. Basta que Ele seja onipotente. Nesta perspectiva, deve-se aceitar tudo o que Ele faz ou permite. Esta é a posição do Jó bíblico. 

Mas Deus que, além de ser Onipotência, é Sabedoria – vamos repeti-lo mais uma vez -, Amor, deseja, por assim dizendo, justificar-se diante da história da humanidade. Não é o Absoluto que está fora do mundo, e ao qual portanto é indiferente o sofrimento humano. É o Emanuel, o Deus-conosco, um Deus que compartilha a sorte do homem e participa de seu destino. Aqui vem à luz outra insuficiência, ou melhor, a falsidade da imagem de Deus que o Iluminismo aceitou sem objeções. Quanto ao Evangelho, constituiu certamente um passo atrás, não na direção de um melhor conhecimento de Deus e do mundo, mas no sentido de sua incompreensão.

Não, absolutamente não! Deus não é alguém que se acha apenas fora do mundo, contente em ser em Si mesmo o mais sábio, o onipotente. Sua sabedoria e onipotência se põem, por livre escolha, a serviço da criatura. Se na história humana está presente o sofrimento, compreende-se porque Sua onipotência se manifestou com a onipotência da humilhação mediante a Cruz. O escândalo da Cruz é para sempre a chave de interpretação do grande mistério do sofrimento, que pertence de modo quase orgânico à história da humanidade.

Nisto concordam até os críticos contemporâneos do Cristianismo. Eles também veem que o Cristo crucificado é uma prova da solidariedade de Deus com o homem sofredor. Deus fica ao lado do homem. E o faz de modo radical: “Aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo, por solidariedade aos homens. E... humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte, até a morte de cruz” (Fl 2,7-8). Tudo se encerra nisto: todos os sofrimentos individuais e os sofrimentos coletivos, os sofrimentos causados pelas forças naturais e os causados pela livre vontade humana, as guerras e o gulags, e os holocaustos: o holocausto judeu, mas também, por exemplo, o holocausto dos escravos negros da África.

Cruzando o Limiar da Esperança
Por Sua Santidade João Paulo II
Vittorio Messori

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