Revista Pergunte
e Responderemos – março 2006
Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.
O pai da
Psicanálise, Sigmund Freud (+ 1939), foi um judeu que se disse abertamente
incrédulo. Esta sua posição não podia deixar de influir nos seus escritos. Abaixo
vai publicada uma breve coletânea de textos em que Freud manifesta sua
cosmovisão ateia.
Tal documentação
é transcrita da revista ULTIMATO, novembro-dezembro 2005, pp. 23s, revista a
cujo diretor agradecemos a autorização de a publicar.
Freud Descrente
Um ano antes
de morrer, Freud, já octogenário, fez mais uma vez sua pública profissão de fé
na não-existência de Deus numa carta dirigida ao historiador Charles Singer: “Jamais
em minha vida particular ou nos meus escritos eu escondi o fato de que sou
descrente de ‘cabo a rabo’”. Ele se referia a si mesmo, aparentemente sem
escrúpulos, como um “médico sem deus”, ou um “materialista”, um “ateu”, um “descrente”
e um “infiel”.
Nascido e
educado na religião judaica e casado com uma mulher que era neta de rabino,
Freud, quando criança, devia cantar ou recitar os dois únicos salmos iguais do
Saltério, que começam com a declaração: “Diz o tolo em seu coração: ‘Deus não existe’”
(Sl 14,1; 53.1). contudo, era seu primeiro ensaio sobre a visão do mundo
religioso (Ações obsessivas e práticas religiosas); dá a entender que tolo é
aquele que tem necessidade de fé, a pessoa que não avança em seus estudos.
No dia 6 de
maio de 1891, o pai de Sigmund Freud, Jacob Freud, lhe deu de presente uma
velha Bíblia na qual o filho havia lido quando criança, como a seguinte
dedicatória: “Você enxergou neste livro a visão do Todo-Poderoso, você ouviu de
boa vontade, você o praticou e tentou voar alto nas asas do Espírito Santo. Desde
então, eu preservei a mesma Bíblia. Agora, no seu 35º aniversário, eu tirei o
pó dela e a estou enviando a você, como prova de amor do seu velho pai”.¹
Embora citasse
frequentemente a Bíblia, tanto o Antigo como o Novo Testamento, e tivesse
familiaridade com a Palavra de Deus, Freud afirmava que as Escrituras “estão
cheias de contradições, revisões e falsificações”.²
Além da
influência judaica, Freud recebeu influência cristã através da ama-seca “feia,
bastante velha”, que lhe falava do Deus Altíssimo e do inferno e o levava à
missa em Freiberg, na Morávia, onde ele nasceu, naquela época com uma população
de 4 a 5 mil habitantes, quase todos católicos.
Sob o prisma
da psicanálise, Freud dizia que Deus não nos criou à sua imagem, mas fomos nós
que criamos Deus à imagem dos nossos pais. Às vezes, ele ia longe demais: “Não
tenho temor nenhum do Todo-Poderoso. Se nós viermos a nos encontrar um dia,
provavelmente terei mais queixas contra Ele, do que Ele poderia ter de mim”³
A frase mais
infeliz de Freud foi pronunciada quando ele era estudante universitário em
Viena: “Não pretendo me entregar”.4 O futuro médico
referia-se à sua disposição de resistir a qualquer influência que o levasse a crer
em Deus. E ele conseguiu. Mais ou menos na mesma ocasião, Freud fez dois cursos
de Filosofia: um deles foi sobre a existência de Deus. Não foi fácil escapar das
aulas nem da influência de Fanz Brentano, professor de Filosofia na
Universidade de Viena, “um homem notável, um crente, um teólogo, um camarada
danado de esperto, de fato um gênio”. Freud chegou a vacilar e cogitou a
possibilidade de tornar-se crente. Foi quanto fez uma quase-confissão: “É
desnecessário dizer que sou um ateu somente por necessidade, e sou honesto o
suficiente para confessar que sou incapaz de refutar os argumentos dele [Brentano];
entretanto, não tenho nenhuma intenção de me entregar tão rápida ou
completamente”.5
Teria o
Espírito Santo advertido Freud com as mesmas palavras ditas a Saulo na entrada
de Damasco: “Resistir ao aguilhão só lhe trará dor” (At 26,14)?
O fato é que
Freud ofereceu forte resistência a todas as oportunidades que lhe surgiam na
vida para deixar de ser ateu. Ele passou de largo por aquilo que Immanuel Kant
chama de “placas de sinalização” – o céu estrelado acima e a lei moral dentro
de nós, tudo apontando com clareza inconfundível para Deus.
Parece que
Freud conhecia o famoso livro A Imitação de Cristo, atribuído ao teólogo alemão
Tomás de Kempis, nascido por volta de 1380. Também não provocou mudança alguma
o encontro pessoal que ele teve com o filósofo e psicólogo americano William
James, um ateu convertido ao cristianismo, em sua única visita aos Estados
Unidos, em 1909. A essa altura, James estava com 67 anos e acabar de publicar O
Significado da Verdade, e Freud tinha 53 anos. O nova-iorquino William James
era especialista em teologia propriamente dita (natureza e existência de Deus)
e na imortalidade da alma. O livro
favorito de Freud não era outro senão o clássico Paraíso Perdido, o maior poema
épico da língua inglesa, leitura obrigatória dos puritanos e dos não-conformistas
da Inglaterra por dois séculos, escrito por John Milton em 1667.
A influência
cristã mais duradoura, mais didática e mais amável que Freud recebeu na vida
foi pela correspondência com o pastor reformado Oskar Pfister, doutor em Filosofia
e Teologia, residente em Zurique, na Suíça. Por longos 30 anos (de 1909 a 1939),
Freud e Pfister (este 17 anos mais moço que aquele) trocaram cartas entre si.6
Um dos
poemas prediletos de Freud era Lázaro, do poeta alemão Heinrich Heine, quase 60
anos mais velho do que o médico de Viena. Armand Nicholi, autor de Deus em
Questão – C.S. Lewis e Freud debatem Deus, amor, sexo e o sentido da vida
(Editora Ultimato, 2005), supõe que a atração de Freud pela história da ressurreição
de Lázaro reflita o seu próprio desejo de permanência.
Que Freud
morreu declarando-se ateu às 3 horas da madrugada do dia 23 de setembro de
1939, ninguém tem dúvida. O mesmo não se pode dizer se interiormente ele tinha
absoluta convicção da não-existência de uma Inteligência Superior. À semelhança
de outros ateus, ele costumava citar o nome de Deus em suas cartas: “Eu passei
nos meus exames com a ajuda de Deus”; “Se Deus quiser”; “A ciência parece
demandar a existência de Deus”; “Pela graça de Deus” etc.
Além do
mais, Freud fez questão de inaugurar a sua clínica particular especializada em
neuropatologia na Páscoa de 1886, quando tinha 30 anos, a mesma idade com que
Jesus Cristo iniciou o seu ministério (Lc 3,23). Essa escolha seria sinal de
respeito por aquele dia de profundo significado religioso ou refletia desafio e
desrespeito por Jesus?
QUANDO O
ATEU ESQUECE QUE É ATEU
No início de
setembro de 2005, na cidade de Franca, SP, um pai sofrido e de posição social
modesta declarou à Folha de São Paulo: “Não creio mais em Deus. Mesmo assim,
oro todas as noites pedindo que Deus devolva a vida de meu filho ou o leve
embora de uma vez”.
Sigmund Freud
cometeu o mesmo “cochilo” doutrinário, mais de uma vez.
Numa de suas
cartas ao pastor Oskar Pfister, Freud chama o amigo de “caro homem de Deus”
(4/10/1909).
O psiquiatra
Armand M. Nicholi Jr. teve acesso às muitas cartas de Freud e achou nelas
palavras e frases como: “o bom Senhor”; entregar ao Senhor”; pôr na mão do
Senhor”; “até depois da ressurreição”; “o julgamento divino”; “a vontade de
deus”; “Deus altíssimo”; “se algum dia nos encontrarmos nas alturas”; “no outro
mundo”; “minha oração secreta” (Deus em Questão, p. 61).
Não é fácil
ser ateu. As coisas se complicam quando surge um problema, como o que Freud
confessa a Pfister na carta de 14 de dezembro de 1911: “Fiquei encalhado em
diversas pocinhas no meu estudo da psicogênese da religião e com as poucas
forças que tenho atualmente não posso desencalhar” (Cartas entre Freud e
Pfister, p. 73).
1Deus em
Questão p. 24.
2Idem, p. 473Idem, p. 218.
4Idem, p. 222.
5Idem, p. 26.
6Cartas entre Freud e Pfister: Viçosa, MG: Editora Ultimato, 1998.
Um comentário:
Esse post está fantástico! Gostei imenso! Beijos!
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