Em Mateus 8,22, Jesus exorta: “Segue-me, e deixa os
mortos enterrarem seus mortos”.
Que diremos a propósito do texto acima? Ou de que pense que não
adianta rezar pelos mortos, ou que temos que fazer algo de nossa vida enquanto
temos vida e não depois da morte; e que muitos católicos questionam estes ‘costumes’.
Dom Estêvão Bettencourto O.S.B. responde:
Devemos reconhecer que ninguém pode merecer coisa alguma na
vida póstuma; é nesta vida que nos formamos, praticamos obras boas, pois a
morte nos estabiliza em nossa última opção. Tal como estivermos na hora da morte,
assim ficaremos para sempre em nosso relacionamento com Deus. Se alguém morre
com sincero amor a Deus, não recairá no pecado, porque se terá estabilizado no
bem; e, se alguém morre consciente e voluntariamente avesso a Deus, não poderá
converter-se ao Senhor. Estas verdades são clássicas no Cristianismo.
Coloquemos agora uma pergunta: se alguém morre com seu amor
sinceramente voltado para Deus, mas ainda portador de resquícios do pecado,
como são as impaciências, as maledicências, as omissões... que ocorrem no dia a
dia, essa pessoa poderá ver Deus face a face? Deus é três vezes Santo; pode alguém
contemplá-lo com a alma ainda carregada de pecado, mesmo que seja apenas pecado
leve? A lógica nos diz que não; há contraste entre a santidade de Deus e
qualquer tipo de pecado, de modo que a própria alma da pessoa falecida sentirá
o despropósito e também o desejo de se preparar devidamente para a visão de
Deus face a face.
A esta altura alguém dirá: “Mas Cristo já satisfez por mim,
de modo que estou livre de meus pecados. Quando eu morrer, Cristo me recobrirá
com o seu manto de justiça ou de santidade e assim eu, pecador, passarei por
Santo diante de Deus. não me devo importar com a eliminação dos “pecadinhos” e
das más tendências, pois isso seria impossível e inútil; basta a satisfação prestada
por Cristo em meu nome, para que o Pai do céu me aceite”.
Meu caro leitor, esta é a doutrina protestante: ensina que a
alma humana está vendida ao pecado, está indelevelmente marcada pelo pecado, de
modo que é desnecessário e impossível querer purificar-se dos resquícios de
nossas culpas. É suficiente, dizem, ter fé nos méritos do Salvador. Que responderemos
a esta tese?
Responderemos com Santo Agostinho, dizendo: “Aquele que te
criou sem ti, não te salva sem ti”. Isto quer dizer que Deus nos oferece as
graças, os recursos da salvação, o sangue precioso de Cristo..., mas quer que
os recebamos consciente e voluntariamente; se Ele nos deu inteligência e
vontade, Ele quer que as apliquemos aos interesses de nossa salvação, encaminhando-nos
consciente e voluntariamente para Ele na luta contra o pecado e na procura de
uma pureza maior até chegar a ser total.
Eis, porém, que o nosso leitor poderá objetar: não estamos
invencivelmente sujeitos ao pecado? É possível extinguir toda raiz do pecado
existente em nós?
- Respondemos que sim; é possível e até necessário. É o próprio
São João quem no-lo diz em 1Jo 3,2s: “Caríssimos, desde agora somos filhos de
deus, mas o que seremos, ainda não se manifestou. Sabemos que, quando Ele
aparecer, seremos semelhantes a Ele, já que o veremos tal como Ele é. e todo
aquele que nele põe esta esperança, torna-se puro como Ele é puro”.
É bem claro o pensamento de São João: somos chamados a ver
Deus face a face e, para que isto aconteça, devemos procurar purificar-nos para
sermos puros como Ele (Jesus) é puro. Essa pureza consiste em eliminar da nossa
vida toda incoerência, não pactuar com a negligência, ou com uma certa
mediocridade ou com um certo contentamento pelo que somos e conseguimos. O cristão
não para; ele não diz: “Já fiz minha parte, Jesus fará o resto, Ele cobrirá a
mim (pecador) com o seu manto de santidade e eu, pecador, passarei por Santo
diante do Pai”. Não; o sermão da montanha (Mt 5-7) no incita a procurar sempre
mais a perfeição, dizendo até: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é
perfeito” (Mt 5,48).
Perguntará alguém: “E se o cristão não conseguir erradicar
toda raiz de pecado até a hora da passagem para a outra vida, que acontecerá?”
Acontecerá o seguinte: Deus, em sua misericórdia, concederá uma chance póstuma
de purificação, que é precisamente chamada “o purgatório”. Este não é um lugar
com fogo e diabinhos atormentando a alma, mas é um estado póstumo, no qual o cristão
verá, com toda a nitidez, que o “pecadinho” é uma coisa séria e deve ser
repudiado com todas as fibras do nosso coração; não pode haver complacência com
o pecado; na outra vida teremos a ocasião de repudiar o pecado com mais ardor
do que neste mundo, quando ele nos seduz muito sorrateiramente.
Por conseguinte, existe o purgatório póstumo, alias
documentado em 2Mc 12,38-45 e 1Cor 3,10-15.
Vem agora a questão final: mesmo dado que existe o
purgatório, ainda subsiste a indagação: para que serve nossa oração pelos
mortos, se a sua sorte já está definida? Nossa oração pelos mortos não tem por
objetivo obter a conversão dos que partiram para o além em pecado grave; ela
tem em vista aqueles que partiram desta vida convertidos ao Senhor, mas ainda carregados
de certas incoerências ou impurezas (caso que, alias, parece ser bastante
frequente). Pedimos a deus por essas almas, para que o amor a Deus, nelas
existente, penetre o fundo do eu ser e extinga todo amor desregrado e todo
apego ao pecado. Com outras palavras: pedimos que o amor a deus arranque o
caroço da tiririca que permanece no cristão, mesmo quando ele se confessa e
reconhece contritamente os seus pecados. é este o sentido da oração pelos
mortos; é um ato de caridade para com nossos defuntos. Se nós rezamos por
nossos irmãos nesta vida quando estão doentes ou atribulados, por que não rezaríamos
por nossos irmãos, na outra vida, necessitados de acabar a purificação dos seus
afetos para poder logo ver Deus face a face? a caridade deve ser a mesma para
com os da Terra e os do além; somos solidários uns com os outros. Deus, que
assim nos fez interdependentes, não permite que a morte interrompa a comunhão que
ele estabeleceu entre nós.
Para ilustrar estas verdades, seja citada uma bela passagem
dos escritos de Santa Teresinha de Lisieux, muito humilde, mas muito cheia de
Deus, a ponto que se pensa em proclamá-la Doutora da Igreja.
Santa Teresinha no Carmelo tinha a incumbência de rezar por
um padre missionário, que trabalhava em região longínqua; era o Pe. Bellière. Certa
vez, a religiosa lhe escreveu uma carta, na qual dizia: “V. Revma prometeu
rezar por mim durante toda a sua vida. Sem dúvida, ela será mais longa do que a
minha, e não lhe será permitido cantar como eu: ‘Tenho esperança, meu exílio
será curto...’ (estrofe 9 da poesia de Teresa intitulada ‘Viver de amor’). Mas não
lhe é permitido esquecer sua promessa de rezar por mim. Se o Senhor Jesus me
levar cedo consigo, peço-lhe que continue, cada dia, a mesma oração, pois
desejarei no céu a mesma coisa que na Terra: ‘Amar Jesus e torna-lo amado’”.
Como se vê, a grande Santa pedia a um sacerdote presente na
Terra que rezasse por ela depois que ela partisse, a fim de que pudesse amar
Jesus..., e amar Jesus sem nenhum entrave de pecado que lhe pudesse ficar na
alma.
Por outro lado, Santa Teresinha prometia que, no céu,
rezaria por todos os seus irmãos ainda peregrinos na Terra – o que é possível e
real dentro da Comunhão dos Santos, na qual estamos todos inseridos, quer
vivamos neste mundo, quer no além: “Sinto que vou entrar no repouso... Mas
sinto, sobretudo, que minha missão vai começar, minha missão de fazer amar o
bom Deus como ao amo, de mostrar meu pequeno caminho às almas. Se o bom Deus ouvir
meus desejos, meu céu se passará na Terra até o fim do mundo. Sim, quero passar
meu céu a fazer o bem sobre a Terra. Isto não é impossível, visto que, no próprio
seio da visão beatífica, os anjos zelam por nós”. (Caderno Amarelo, 17,7).
Vemos assim, prezado (a) leitor (a), o valioso significado
da Comunhão dos Santos, na qual rezamos por nossos irmãos que passaram para a
outra vida, e eles por nós. E – notemos bem – o melhor sufrágio pelos mortos é
certamente o Santo Sacrifício de Cristo oferecido sobre os nossos altares.
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