"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

sábado, 20 de março de 2010

Palavra Oral e Palavra Escrita


A palavra oral, viva como é, vem a ser o meio de comunicação, por excelência, da pessoa humana. Ela se cristaliza na escrita, que não se interpreta a si mesma, mas está sujeita às interpretações subjetivas dos leitores. Os antigos viviam estas verdades falando muito mais do que escreviam; mediante processos mnemotécnicos¹ e outros artifícios sabiam transmitir as sua tradições de maneira fiel e tenaz através de várias gerações.

Tais proposições são ilustradas pela seguinte estória:

QUEM COLOCA OS PONTOS

Um homem rico estava muito mal. Pediu papel e pena. Escreveu assim:
“Deixo meus bens à minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do alfaiate nada aos pobres”
Morreu antes de fazer a pontuação. A quem deixava ele a fortuna?
Eram quatro concorrentes.
O sobrinho veio e fez a seguinte pontuação:
“Deixo meus bens à minha irmã? Não, a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres”.
A irmã chegou em seguida. Pontuou assim o escrito:
“Deixo meus bens à minha irmã, não a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres”.
O alfaiate pediu cópia do original. Puxou a brasa para a sardinha dele:
“Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho jamais! Será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres”.
Aí, chegaram os descamisados da cidade. Um deles, sabido, fez esta interpretação:
“Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho jamais! Será paga a conta do alfaiate? Nada! Aos pobres”.

A estória sugere duas conclusões importantes:
1) Cada pessoa humana entende a vida segundo a pontuação que ela coloca.

Há quem pontue de maneira otimista como há quem o faça de modo pessimista. Na verdade, é cada um (a) que dá sentido à sua existência. Já nos tempos de S. Agostinho os homens proferiam uma queixa que se repete até hoje: “Os tempos são maus, os tempos são penosos!” o Bispo de Hipona ouvia isto diariamente e num de seus sermões respondeu: “Os tempos são aquilo que nós somos. Não há tempos bons ou maus, mas há pessoas boas ou más... Os tempos, somos nós que os fazemos”. Somos nós que os pontuamos²...
2) A Palavra de Deus transmitida por vias humanas está sujeita às mesmas experiências.
Ela foi comunicada primeiramente por via oral; só depois passou para a escrita. Quem deseja entender corretamente tal escrita (bíblica), não pode deixar de ouvir a Palavra oral que berçou a escrita, a acompanha e a elucida. Tal observação vale muito especialmente para o recente caso dos ditos familiares (primos) de Jesus, que o ossário descoberto em Israel pôs em novo foco: a palavra ‘ah’ há de ser entendido como a tradição oral a entendeu, ou seja, no sentido de “parente, familiar”.

Dom Estêvão Bettencourt O.S.B.
Revista Pergunte e Responderemos – Janeiro 2003 nº 487

Abaixo acrescentado por mim:

¹A mnemotécnica é uma técnica de estimulação da memória. Seu nome vem da deusa da memória, Mnemosyne.
Antes da invenção do primeiro alfabeto linear (por volta de 1700 a.C., pelos fenícios), todo o processo de transferência de informação era basicamente oral e, para tanto, esses povos precisaram desenvolver técnicas eficazes de memorização de forma a assegurar sua unidade política, social e religiosa. A arte da memória foi sendo deixada de lado com o advento da imprensa - que eliminou a necessidade de uma memória artificial.
Os antigos gregos consideravam a memória uma identidade sobrenatural ou divina: era a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem as Artes e a História. A deusa Memória dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lembrá-lo para a coletividade. Tinha poder de conferir imortalidade aos mortais, pois quando o artista ou o historiador registram em suas obras a fisionomia, os gestos, os atos, os feitos e as palavras de um humano, este nunca será esquecido e, por isso, tornando-se memorável, não morrerá jamais.(Wikipédia)

² Cfr.: tema da postagem anterior: “Os tempos são maus”

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