"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Somente a fé? Não as obras? continuação - Fé e obras, segundo Lutero




1. Fé e obras, segundo Lutero

Para entender a posição de Lutero, é preciso reconstituir um pouco das correntes filsófico-teológicas dos séculos XIV/XV assim como a personalidade humana e o temperamento do reformador.

1.1. Correntes filosófico-teológicas

Mencionaremos o Ocamismo e o Nominalismo.

1) Ocamismo. Nos séculos XIV/XV Guilherme Occam (+ 1347) e Gabriel Biel (+ 1495) ensinaram uma antropologia otimista, muito diferente do pessimismo antropológico de S. Agostinho; diziam, sim, que o homem, mesmo após o pecado original, pode realizar por sua própria natureza o bem moral; pode por si evitar o pecado mortal e cumprir toda a lei de Deus. O próprio conceito de pecado original, enfatizado por S. Agostinho (+ 430), havia sido muito atenuado desde durando de S. Porciano (+ 1334).

Guilherme Occam foi vivamente censurado pela autoridade da Igreja. Embora alguns documentos insinuem que se tenha reconciliado, há historiadores que duvidam da volta de Occam ao grêmio da Igreja antes de morrer em 1349. É certo que a primeira edição do Index dos Livros Proibidos, publicada em 24/03/1564, incluía entre as obras condenadas três importantes escritos de Occam.

Não obstante, as teses de Occam e Biel eram muito disseminadas nas escolas teológicas da época de Lutero; este, aliás, teve como texto de aulas o “Comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombado” da autoria de Gabriel Biel. – Ora a polêmica de Lutero contra a teologia católica foi, em grande parte, polêmica contra tal corrente teológica.

2) Nominalismo. Outra escola ponderosa na formação de Lutero foi a do Nominalismo, especialmente no tocante à justificação (ou ao modo como o homem é absolvido dos pecados e feito amigo de Deus).

O Nominalismo professa que às nossas palavras não correspondem ideias ou conceitos universais, mas são apenas nomes que designam realidades individuais: assim, por exemplo, quem diz homem, não está enunciando a natureza humana ou o ser humano tal como ele se realiza em Pedro, Paulo, Maria, Joana, mas apenas as notas típicas deste indivíduo; nenhum indivíduo seria portador de uma essência universal ou de uma essência que se realizaria também nos outros indivíduos da mesma espécie. Os universais seriam palavras ou nomes sem consistência. Ao mesmo tempo que depreciavam as palavras, caindo num certo agnosticismo, os nominalistas eram voluntaristas, isto é, acentuavam exageradamente o alcance da vontade de Deus; Este poderia fazer que um círculo quadrado (absurdo aos olhos da sã razão) se tornasse uma realidade; as verdades seriam verdade não por causa da sua lógica intrínseca (fundamentada, sem dúvida, na sabedoria e no ser de Deus), mas unicamente porque Deus quer que sejam verdades. Poderiam ser verdadeiras as proposições ilógicas, absurdas ou contraditórias, se Deus o determinasse. ¹

Guilherme Occam e Gabriel Biel foram nominalistas. Eram, pois, infensos às essências e aos conceitos universais e professavam o voluntarismo de Deus: admitiam, portanto, que Deus poderia deixar coexistir num indivíduo o pecado e o amor; poderia considerar como meritórios e salvíficos atos praticados sem amor. Verdade é que Deus atualmente requer o amor para perdoar o pecado e reconhecer os méritos do cristão; mas Deus poderia não o requerer.

Ora Lutero e os reformadores deram um passo adiante nesta linha, afirmando que realmente Deus justifica o pecador sem o transformar interiormente ou sem lhe apagar o pecado. Lutero pôde chegar a posições tão pouco lógicas dado que desprezava a razão humana.²

Faz-se mister considerar agora

1.2. O temperamento pessoal de Lutero

Dotado de índole sensível, emotiva e paradoxal, Lutero era atormentado por um problema pessoal: sentia a concupiscência (ou cobiça desregrada), que ele julgava ser o próprio pecado, e não conseguia erradicá-la por seus exercícios de piedade e ascese. Isto gerava nele uma angústia. Sabia, sim, que a vida cristã é incompatível com o pecado, mas julgava que a concupiscência, profundamente arraigada nele, era, como tal, pecaminosa. Procurava viver como monge irrepreensível, mas não via o resultado de seus esforços, de modo que se sentia, diante de Deus, inquieto e incapaz de encontrar paz.

Foi sobre este pano de fundo que Lutero descobriu uma fórmula de solução que o tranquilizou.

A seguir: A fé fiducial ou fé-confiança

Dom Estêvão Bettencourto O.S.B. - Diálogo Ecumêncio

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¹ A sã doutrina ensina que a verdade depende do ser de Deus, e não da vontade de Deus. Existe uma lógica do ser, à qual a vontade de Deus não derroga – o que não diminui a Onipotência de Deus.

² Lutero protestou contra a declaração da Universidade da Sorbone (Paris), que condenou a tese da dupla vontade (a verdade no plano da fé poderia contradizer à verdade no plano da razão) de Sigero de Brabâncio. Tinha a razão na conta de “prostituta diabólica”, inimiga da graça.

“Nas coisas de Deus, dizia o Reformador, a razão se move com a mesma torpeza que um cavalo cego, e tudo quanto ela comenta ou resolve, é falso”.

Notícias colhidas em G. Fraile, História de la Filosofia III. Madrid III pp. 138s.


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