"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Somente a fé? Não as obras? continuação - A fé fiducial ou fé- confiança

1.3. A fé fiducial ou fé- confiança


Em 1519 Lutero meditava sobre a sentença de S. Paulo: “A justiça de Deus se revela da fé para a fé” (Rm 1,17)... sentença em torno da qual desenvolveu as seguintes ponderações:

1) Desde o pecado de Adão, o gênero humano está intrinsecamente corrompido; é irremediavelmente presa do pecado. Esta concepção levou Lutero a negar o livre arbítrio na obra “De servo arbítrio” (datada de 1525, contra Erasmo de Rotterdam): o pecado original terá extinto a capacidade, do homem, de optar pelo bem supremo, embora não lhe tenha tirado a possibilidade de escolher entre os meios necessários à orientação de sua vida e econômico-social.

O pensamento de Lutero é ilustrado por uma imagem: “A vontade do homem, posta entre Deus e Satanás, é semelhante a um jumento. Quando Deus o cavalga, vai aonde Deus quer que vá... Mas, quando Satanás o cavalga, vai aonde Satanás quer que vá. Não está em poder do homem procurar um ou outro desses dois cavaleiros, mas eles combatem entre si para apoderar-se da vontade de possuí-la” (Obras, Tom V, Ed. Genebra, 1958, p. 56).

2) Estando radicalmente deteriorada, a natureza humana não pode ser justificada por uma autêntica transformação interior: não há recurso que elimine a sua intrínseca pecaminosidade. Por isto Deus dá ao homem apenas uma justiça¹ extrínseca, que, sem apagar a realidade do pecado, apenas elimina as consequências deste. São palavras de Lutero: “É simultaneamente verídico que nenhum cristão tem o pecado e que todo cristão e que todo cristão tem o pecado. Aqui se fundamenta aquela distinção segundo a qual nos cristãos há um duplo pecado: o pecado perdoado e o pecado que ficou e que deve ser extirpado e lavado” (Comentário ao Miserere, 1532).

3) A justiça extrínseca, que Deus outorga ao homem, é a justiça de Cristo; os méritos do Salvador, à guisa de manto, revestem o homem, encobrindo o pecado aos olhos do Pai. Escreve Lutero:

“O cristão é mais branco do que a neve... Todavia é preciso observar diligentemente que essa pureza é pureza de outrem; na verdade, Cristo nos ornamenta e reveste com a sua justiça. Se olhares o cristão deixando de lado a justiça e a pureza de Cristo, e considerando-o como ele é em si, mesmo quando parece santíssimo, não encontrarás pureza alguma, mas, por assim dizer, um negrume diabólico” (ib.).

À justiça de Deus se segue o dom do Espírito Santo, que Deus também se digna de outorgar ao homem.

4) Pergunta-se agora: como pôde o homem atrair a si a justiça de Cristo?

- visto que ele é intrinsecamente deteriorado, não o conseguirá mediante obras boas. Estas de nada valem; são, antes, um obstáculo, porque nos impedem de nos abandonar unicamente à salvação que vem da cruz.

A única condição para que a justiça de Cristo nos recubra, é a fé fiducial.² A fé, pra Lutero, é um ato do pecador que se abandona a Deus e deste recebe a consoladora persuasão de que o Senhor lhe concede misericórdia e salvação; o pecador então se sente perdoado, envolvido pela santidade de Cristo e, por conseguinte, justificado.

A fé assim entendida é gratuito dom de Deus, que a dá a quem Ele quer dar, ou seja, a quem Ele predestinou.

É a partir destes princípios que se diz que Lutero estabeleceu a norma “Sola fides sine operibus” (somente a fé, sem as obras, salva). Tal norma se tornou um dos princípios fundamentais do Protestantismo; veio a ser um pomo de discórdia entre católicos e protestantes, como se aqueles pusessem a tônica sobre as obras, em detrimento da graça de Deus ou da gratuidade da salvação.

Quatrocentos e cinquenta anos após Lutero, podemos atualmente reconsiderar o problema, verificando que foi formulado em função de circunstâncias momentâneas. Se fizermos abstração de dados contingentes da controvérsia, verificaremos que, em última análise, não é grande a distância existente entre católicos e protestantes neste particular.

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¹ Justiça, neste contexto, significa, como muitas vezes em São Paulo, a santidade, a graça concedida por Deus ao homem.

² A palavra fidúcia em latim quer dizer confiança. Fiducial, portanto, equivale a confiante.




A seguir: O primado da graça e da fé
Examinaremos os pontos de convergência e os que ainda criam distância.

Dom Estêvão Bettencourt O.S.B. - Diálogo Ecumênico

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