"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Somente a fé? Não as obras? continuação - O primado da graça e da fé


2. O primado da graça e da fé

Examinaremos os pontos de convergência e os que ainda criam distância.

2.1. Pontos de convergência

Consideremos, antes do mais, os pontos nos quais se encontram concordes católicos e protestantes:

a) Na há dúvida, nem para uns nem para outros, de que a salvação do homem é tão somente iniciativa e dom de Deus. Ninguém pode comprar a sua salvação; ninguém pode, somente por suas próprias forças, merecer a vida eterna.

Por conseguinte, a graça de Deus tem primazia absoluta sobre os esforços salvíficos do homem.

b) Em consequência, quando o homem recebe o dom de Deus, não lhe é lícito gloriar-se como se fosse melhor do que seus semelhantes, mas toca-lhe tão somente aceitar esse dom numa atitude de fé (“creio na misericórdia de Deus”) e de confiança. – Também este ponto é comum a protestantes e católicos.

As proposições a) e b) derivam-se da teologia paulina; cf., por exemplo, Ef 2,8-10:

“Pela graça fostes salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, é o dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho. Pois somos criaturas dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras que antes Deus já preparara para que nelas andássemos”.

Todavia a doutrina católica, além de abarcar a doutrina paulina, professa também a de S. Tiago.

2.2. Proposições católicas

São Tiago muito insiste em que a fé sem as obras de nada serve:

“O homem é justificado pelas obras, e não simplesmente pela fé. Da mesma maneira, também Rahab, a meretriz, não foi ela justificada pelas obras quando acolheu os mensageiros e os fez voltar por outro caminho? Com efeito, como o corpo sem o sopro da vida é morto, assim também é morta a fé sem obras” (Tg 2,24-26).

Estaria São Tiago em contradição com São Paulo?

- Não. O Apóstolo São Paulo, ao incutir a fé sem necessidade de boas obras, tem em mira a entrada na justificação ou o início da vida cristã; como dito, ninguém se torna amigo de Deus por seus méritos próprios independentemente da graça de Deus. Mas é por pura graça, recebida em atitude de fé, que os pecados nos são perdoados.

Quanto ao Apóstolo São Tiago, tem em vista não a entrada, mas a perseverança na amizade com deus. Ninguém se mantém na justiça recebida se professa a fé sem a viver adequadamente ou sem a traduzir em boas obras. Diz muito sabiamente São Tiago que os demônios têm fé, mas esta fé de nada lhes serve; estremecem, porque não têm conduta de vida correspondente a essa fé (cf. Tg 2,19).

Está claro, porém, que também a realização das obras boas, mediante as quais se dá a perseverança dos justos na amizade com Deus, depende da graça divina: “Sem mim nada podeis fazer”, dizia o Senhor em Jo 15,5. A Igreja sempre repeliu o pelagianismo e o semipelagianismo, que, demasiado otimistas em relação à natureza humana, afirmam ser esta capaz de praticar algum bem independentemente da graça de Deus. O Ocamismo que Lutero rejeitava, não correspondia à doutrina da Igreja Católica; por conseguinte, combatendo o Ocamismo, Lutero não se estava opondo aos ensinamentos oficiais do Catolicismo.

Assim fica mantido incondicionalmente o primado da graça de Deus na vida do cristão, mas leva-se em conta a doutrina de São Tiago, que também é mensagem do Novo Testamento. Aliás, verifica-se que muitos protestantes, na realidade concreta, são exigentes em matéria ética; apregoam a abstinência de fumo, de álcool, de carne, de danças, etc., enveredando por um moralismo altamente rigoroso, que dá a crer que, para eles, a salvação depende de boas obras. Tais irmãos não fazem senão exprimir, de maneira fanática, uma verdade muito compreensível e profundamente bíblica: sem a prática do bem e sem a ascese fielmente observada, arriscamo-nos a ser suplantados pelo pecado e a perder a salvação eterna. Esse esforço pessoal não nos torna autores da nossa salvação ou isentos da obra redentora de Cristo, mas permite que a vitória de Jesus sobre o pecado frutifique em nossa conduta de vida.

De resto, o tema “graça de Deus e livre arbítrio do homem” é dos mais obscuros da teologia. Tem sido controvertido desde o século V (S. Agostinho, + 430, foi o doutor da graça) e até nossos dias apresenta questões insolúveis.

Vê-se, pois, que a exigência de boas obras não para entrar na justiça de Deus, mas para nela permanecer não somente é decorrente da mensagem bíblica, mas – pode-se dizer – está incluída também dentro da elaboração teológica do Protestantismo. Nenhum protestante julga que o crente descuidado de sua conduta moral está no caminho da salvação.

Desaparece assim a barreira existente entre católicos e protestantes por causa de inadequadas interpretações dos princípios “sola gratia, sola fides”.

A seguir: 2.3. Ulteriores ponderações
Ao lado da concórdia substancial entre católicos e protestantes, subsistem diferenças acidentais referentes a três pontos atrás mencionados.

Dom Estêvão Bettencourt O.S.B. - Diálogo Ecumênico

Nenhum comentário: