2.3. Ulteriores ponderações
Ao lado da concórdia substancial entre católicos e protestantes, subsistem diferenças acidentais referentes a três pontos atrás mencionados.
2.3.1. Fé
A fé, segundo Lutero, é, antes do mais, confiança e entrega ao Senhor Deus; implica um certo desdém para com a intelectualidade. Lutero estabelecia forte antítese entre fé e razão ou entre sabedoria revelada por Deus e sabedoria adquirida pelo homem.
Ora, segundo a doutrina católica, a fé não deixa de ter o aspecto de confiante entrega a Deus, mas importa necessariamente um elemento intelectual. A fé é a adesão à verdade revelada por Deus, e essa verdade é suscetível de estudo e ilustração por parte da razão humana; donde a definição de Teologia formulada por S. Anselmo de Cantuária (+ 1109): Teologia é “fides quaerens intelilectum” (fé que procura penetrar na verdade mediante a inteligência).
A posição antiintelectual de Lutero parece devida a fatores contingentes da sua época: a teologia escolástica do fim da Idade Média caíra em sutilezas dialéticas vazias, distanciando-se das autênticas fontes da Teologia (a S. Escritura e a Tradição). Ademais o Humanismo e o Renascentismo, a partir de 1450, enfatizavam a pesquisa da história e da documentação da antiguidade; filho de tal época, Lutero desdenhou a razão para exaltar a fé.
2.3.2. Natureza humana e justificação
Em réplica à escola nominalista, que professava exagerado otimismo em relação às possibilidades éticas da natureza humana, Lutero mostrou-se fortemente pessimista neste particular, chegando admitir o servo arbítrio em vez do livre arbítrio.
Consequentemente o reformador não vê como o homem possa ser regenerado intrinsecamente pela graça de Deus, mas aceita apenas a justificação forense ou a não imputação do pecado: este continuará sempre a subsistir no íntimo do homem, mesmo que os méritos de Cristo o revistam como um manto.
Quanto à doutrina católica, de um lado, é contrária ao otimismo pelagiano, afirmando o pecado original, que despojou o ser humano da harmonia inicial. Todavia a teologia católica professa a possibilidade de um saneamento da natureza ferida pelo pecado; somos justificados ou feitos filhos de Deus não apenas porque o Pai não quer ver em nós o pecado que permanece, mas, sim, porque ontologicamente somos regenerados, renascendo de Deus pelo Batismo, a fim de comungar com a vida das três Pessoas Divinas. Observe-se a ênfase com que São João exclama: “Vede que prova de amor nos deu o pai, que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos” (1Jo 3,1).
A concupiscência que permanece no cristão durante toda a sua vida, não é pecado; este só pode existir se o indivíduo consente nos ditames desregrados da natureza. Todavia, se apenas sente impulsos para o mal, sem lhes dar consentimento, não está pecando. Isto quer dizer que a persistência da cobiça desordenada no cristão não exclui tenha sido este regenerado interiormente; um princípio de vida nova ou de vida do segundo Adão é colocado pelo Batismo dentro do velho homem, de tal modo que essa nova criatura coexiste como o velho homem; mas pode e deve crescer, configurando cada vez mais o cristão à imagem do Cristo Jesus. Esta posição católica encontra sobejo apoio nas Escrituras; Lutero talvez a tivesse professado se não fosse a problemática de sua época e, sem dúvida, a do seu caso pessoal.¹ Vejam-se os textos bíblicos correspondentes:
“Todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Não há judeu, nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl a3,26-28).
“Não nos deixamos abater. Pelo contrário, embora em nós o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova de dia a dia” (2Cor 4,16).
“Fostes ensinados a remover o vosso modo de vida anterior – o homem velho que se corrompe ao sabor das concupiscências enganosas – e a renovar-vos pela transformação espiritual da vossa mente e a revestir-vos do Homem Novo, criado segundo Deus na justiça e santidade da verdade”
(Ef 4,21-23).
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¹ Sabe-se que Lutero entrou no convento sem vocação, mas por temor; com efeito, fizera voto a Santa Ana após ter escapado da morte diante de um raio de tempestade quando voltava para Mansfield. No convento o novo frade procurou ser honesto e fiel, mas sentia que a natureza não colaborava como os seus propósitos – o que é bem compreensível; ninguém se deve fazer monge ou frade sem ter recebido autêntico chamado de Deus... chamado este que certamente se manifesta por propensões ou aptidões da natureza.
A seguir: Conclusão
Dom Estêvão Bettencourt O.S.B. – Diálogo Ecumênico
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