"PORQUE ONDE ESTIVER O TEU TESOURO, ALI ESTARÁ O TEU CORAÇÃO". Mt 6,21

domingo, 22 de maio de 2011

Jesus teve irmãos? - “Irmãos de Jesus”, não “filhos de Maria” - continuação


3. “Irmãos de Jesus”, não “filhos de Maria”

Há claros indícios no Evangelho de que os chamados “irmãos de Jesus” não eram filhos da mãe de Jesus, mas parentes em sentido mais amplo.

Levem-se em conta os seguintes textos:

3.1. Lc 2,41-52

Jesus, aos doze anos, foi com José e Maria a Jerusalém, participando da peregrinação de Páscoa. Essa viagem deve ter durado cerca de quatorze dias ao menos. Como se depreende de Lc 2, 43, José e Maria permaneceram em Jerusalém durante os sete dias da festa; ora isto permite dizer que Maria não pode ter deixado em casa e por tanto tempo filhos pequenos, ou seja, irmãos de Jesus no sentido estrito da palavra.

Diga-se, porém, à guisa de hipótese: depois dessa peregrinação Maria gerou outros filhos. O mais velho desses irmãos de Jesus teria então, no início da vida pública do Senhor, cerca de dezoito anos,¹ ao passo que os outros seriam mais jovens ainda. Ora o que os Evangelhos narram a respeito dos irmãos do Senhor, não permite que se atribua a estes idade tão juvenil ou adolescente. Com efeito, a atitude autoritária ou tutelar dos “irmãos” para com Jesus, descrita em Mc 3,21. 31-35 e Jo 7,2-5² no Oriente não teria cabimento nem verossimilhança se esses irmãos fossem jovens; sim, a necessidade judaica atribuía aos irmãos mais moços um comportamento de reverência para com o primogênito, como se deduz, por exemplo, das palavras de Isaque a Jacó: “Sê o senhor dos teus irmãos, diante de ti se curvem os filhos da tua mãe!” (Gn 27,29). Os homens autoritários que se dirigem a Jesus em Mc 3 e Jo 7 deviam ser mais velhos do que o Senhor; por conseguinte, não eram filhos de Maria. ³

3.2. Jo 19,26s

Jesus, ao morrer, confiou sua mãe a João, o discípulo bem-amado. A única explicação plausível para este fato é a que já os antigos escritores da Igreja propunham: Maria não tinha outro filho; daí a necessidade de entregá-la aos cuidados de João, filho de Zebedeu, membro de outra família. Este gesto do Senhor seria incompreensível, se Maria tivesse outros filhos em casa!

3.3. Outros textos

Note-se que nunca o Novo Testamento fala de filhos de Maria e José. Somente Jesus é dito “filho (putativo) de José” 4 “o filho de Maria” (com artigo).  5 Todavia em certas passagens do Evangelho a expressão “filhos de Maria”seria mais natural do que “irmãos de Jesus”, caso se tratasse propriamente de irmãos. Em Mc 3,31-35, por exemplo, a repetição “mãe de Jesus... irmãos de Jesus” é estilisticamente monótono e pesada; mais lógico seria dizer: “Maria e seus (outros) filhos”. Também em At 1,14, seria mais compreensível a fórmula “... com Maria, a mãe de Jesus e seus filhos”.

Mais: a dureza de ânimo que os “irmãos de Jesus” demonstravam para com Jesus causou surpresa, se não escândalo, aos antigos cristãos. Ora havia um meio muito oportuno de explorar essa incompreensão em favor do próprio Jesus. Com efeito, os antigos fieis (inclusive os Evangelistas) podiam ter citado o Sl 68,9 como sendo uma profecia messiânica que se cumpriu em Jesus... Na verdade, assim diz o salmista: "Tornei-me um estranho para os meus irmãos, um desconhecido para os filhos de minha mãe" (Sl 68,9).

Ora o Salmo 68, sem dúvida, reconhecido como messiânico; não menos de dezoito passagens do Novo Testamento o interpretam em sentido messiânico. Nunca, porém, o v. 9 é utilizado para ilustrar a incompreensão e dureza de ânimo dos irmãos de Jesus. Note-se em especial que Mateus podia muito naturalmente concluir o relato de Mt 12,46-50, 6 dizendo que assim se cumpria o Sl 68,9. Pois bem; o único motivo plausível e convincente para explicar tal silêncio é que na verdade o v. 9 do Sl 68 não se podia aplicar a Jesus e aos seus irmãos porque estes não eram filhos da mãe de Jesus.

3.4. “Até que ...” (Mt 1,25) e “Primogênito” (Lc 2,7)

1) Lê-se em Mt 1,25: “José não conheceu Maria (= não teve relações com Maria) até que ela desse à luz um filho (Jesus)”. Deste texto deduzem alguns comentadores que, depois do nascimento de Jesus, José teve relações conjugais com Maria. Tal interpretação, porém, não leva em conta uma peculiaridade da linguagem bíblica (semita): a expressão até que corresponde ao grego heos hou e ao hebraico ‘ ad ki. Ora são conhecidas as passagens da S. Escritura em que essas partículas ocorrem para designar apenas o que se deu (ou não se deu) no passado, sem se indicar o que havia de acontecer no futuro. Tenha-se em vista, por exemplo:

Gn 8,7: o corvo que Noé soltou após o dilúvio, não voltou à arca “até que as águas secassem”. Significaria isto que depois do dilúvio o corvo voltou à arca?

Sl 109,1: Deus Pai convida o Messias a sentar-se à sua direita “até que Ele faça dos inimigos do Messias o supedâneo de seus pés”. Quer isto dizer que, depois de vencidos os inimigos no fim da história universal, o Messias deixará de se assentar à direita do Pai?

Ainda hoje na vida cotidiana não se recorre a semelhante modo de falar, quando por exemplo se diz: “Tal homem morreu antes de ter realizado os seus planos” ou “antes de ter pedido perdão”? poderia alguém concluir disto que, depois da morte, o defunto executou os seus desígnios ou pediu perdão? Diz-se outrossim: “O juiz condenou o acusado antes de o ter ouvido”; seria lícito deduzir destas palavras que o ouviu depois de o ter condenado? – Estes são casos em que se faz referência ao passado, prescindindo do futuro. Tal locução era frequente entre os semitas e constitui, sem dúvida, a base pressuposta do texto de Mt 1,25, como aliás bem reconhecem críticos protestantes do valor de Klostermann. Em consequência, a tradução mais clara da passagem de Mt 1,25 seria: “Sem que ele (José) a tivesse conhecido (isto é, tomado em consórcio carnal, marital), ela (Maria) deu à luz...” Analogamente diríamos para explicar as frases acima citadas: “Tal homem morreu sem ter executado seus desígnios”; “o juiz condenou o acusado sem o ter ouvido”; “as águas do dilúvio secaram sem que o corvo regressasse à arca”.

2) Em Lc 2,7 está escrito: “Maria deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o em faixas e deitou-o numa manjedoura”. – O Evangelista realça o caráter singular dessa natividade, fazendo notar que Maria mesma dispensou os primeiros cuidados ao recém-nascido.

O termo “primogênito” não significa que a Mãe de Jesus tenha tido outros filhos após Ele. Em hebraico, bekor, primogênito, podia designar simplesmente “o bem-amado”, pois o primogênito é certamente aquele dos filhos no qual durante certo tempo se concentra todo o amor dos pais; além disto, o primogênito era pelos hebreus julgado alvo de especial amor da parte de Deus, pois devia ser consagrado ao Senhor desde os seus primeiros dias (cf. Lc 2,22; ex 13,2; 34,19). A palavra “primogênito” podia mesmo ser sinônima de “unigênito”, pois que um e outro vocábulos na mentalidade semita designam “o bem-amado”. Tenha-se em vista, por exemplo, Zc 12,10s:

“Derramarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de graça e de oração, e eles voltarão os seus olhos para Mim. Quanto àquele que transpassaram, chorá-lo-ão como se chora um filho unigênito, chorá-lo-ão amargamente como se chora um primogênito.”

Mesmo fora da terra de Israel podia-se chamar “primogênito” o menino que não tivesse irmão nem irmã mais jovem; é o que atesta uma inscrição sepulcral judaica datada do ano 5 a.C. e descoberta em Tell el-Yedouhieh (Egito) no ano de 1922: lê-se aí que uma jovem mulher chamada Arsinoé morreu “nas dores do parto de seu filho primogênito”. Note-se neste texto o modo de falar que observamos a respeito de Mt 1,25; “primogênito” vem a ser apenas o filho antes do qual não houve outro, não necessariamente aquele após o qual houve outros.

3.5. Maria com os “irmãos de Jesus”

Merece atenção o fato de que Maria apareça frequentemente nos Evangelhos em companhia dos “irmãos de Jesus”, que não eram seus filhos. Por que sempre em tal comitiva?
- A posição subordinada da mulher, no judaísmo antigo, explica que Maria não se apresentasse sozinha em público, mas geralmente acompanhada por próximos parentes de sexo masculino. Julga-se que José, esposo de Maria, tenha falecido antes do início da vida pública de Jesus; em consequência, os parentes de Maria movidos pelo forte seno de família dos orientais e tornaram solidários com ela, acompanhando-a em público e compartilhando a sua solicitude e as suas preocupações por Jesus.

Resta agora investigar qual o grau de parentesco que unia a Maria esses parentes ditos “irmãos de Jesus”, não, porém, “filhos de Maria”.

A seguir: Quem eram os “irmãos”?
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1  Jesus começou a sua vida pública com a idade de trinta anos aproximadamente (cf. Lc 3,23). Por ocasião da mencionada peregrinação pascal, o mesmo Jesus tinha doze anos.

 2 Mc 3,21: “Quando os parentes de Jesus ouviram isto, saíram para o segurar, porque diziam: ‘Está fora de si’.”
    Jo 7,2-7: “Dirigiram-se a Jesus os seus irmãos e lhe disseram: ‘Deixa este lugar e vai para a Judeia, para que também os teus discípulos vejam as obras que fazes. Porque ninguém há que procure ser conhecido em público e, contudo, realize os seus feitos em oculto. Se fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo’. Pois nem mesmo os seus irmãos criam nele.”

3 Supõe-se sempre que Maria não teve filho antes de Jesus – o que é claro se se leva em conta o episódio da anunciação em Lc 1,26-38.

4 Cf. Lc 3,23: “Ao iniciar o seu ministério, Jesus tinha cerca de trinta anos, sendo filho, como se supunha, de José”.

5 Cf. Mc 6,3: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão?”

6 Mt 12,46-50: “Falava Jesus ao povo, e eis que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora, procurando falar-lhe. E alguém lhe disse: ‘Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar-te’. Mas Ele respondeu ao que lhe dera o aviso: ‘Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” e, estendendo a mão para os discípulos, disse: ‘Eis minha mãe e meus irmãos. Porque qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’.”

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